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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 203)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 29 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Para distrair

Lydia Federici

O câmbio não melhora. Feijão está escasso. Resfriado anda pendurado em cada esquina ventosa. Condução é malabarismo puro. Empregada não existe. Se existe, chega tarde e faz o que quer. O frio não vai embora. Sol não esquenta. Menino não estuda. A patroa, não citada, nesta semana, na crônica social, anda mal humorada. A loura fez que não o viu. O aperitivo está sem graça. Dinheiro não estica. Mas sabe encolher, o grande bandido.

Uff! Tudo está ruim. Brabo de ruim. Mas não desesperemos. Algo de bom há de chegar. Pra tudo tem vez. É só ir aguentando. Ter paciência. Não perder a esperança. Não danar-se. E, para esperar, vejamos a história do Ariovaldo. Que, embora não recomendada como remédio às nossas múltiplas aflições, servirá, pelo menos, para distrair.

Ariovaldo, ilustre cidadão santista, teve um começo duro de vida. Principalmente quando, há muitos anos, começou vida nova. Pra dois, o ordenado dava. O diacho é que vinha um terceiro. Absolutamente fora das contas. E esse era o problema. Três não são dois. Por menorzinho que seja o terceiro personagem, três, mesmo em matemática caseira, são dois mais um. Diferença grande.

O ordenado, para a época, era razoável. Mas, por mais supérfluos que cortassem, nunca sobrava nada. O rapaz dava saltos na rua. A moça, em casa, se virava de manso. No fim do mês? Gaveta vazia. E os meses passando. O grande dia chegando. De que jeito se arranjariam?

Ariovaldo tinha paciência. Sabia esperar. Não sentado. Inerte. Ao contrário. Mexia os braços. Gastava sola. Espremia o cérebro. Dia e noite. Esperava e confiava, em atividade. Havia de aparecer um jeito. Pois todas as crianças, quando chega a hora, não acabam vindo ao mundo? Ou só aparecem quando o enxoval está pronto e a carteira do pai recheada? Capaz! Mas o caso é que ele tinha que arranjar dinheiro. Essa preocupação atormentava-o sem cessar.

Numa noite de dormir sobressaltado, Ariovaldo acordou. Acordou com a luminosidade de um número a inundar-lhe os olhos fechados. Passou a mão sobre a mesinha de cabeceira. Não encontrou lápis nem caneta. Com o cotovelo cutucou o braço de Rita. Bem de leve. Para não assustá-la. Quando ela resmungou, ele pediu-lhe um grampo. E, com o braço estendido para fora da cama, escreveu, sonolento, com a ponta do grampo, no chão encerado, o número luminoso.

Acordou atrasado. Engoliu o café e saiu na corrida. Durante toda a manhã trabalhou com uma sensação esquisita. De que se esquecia de algo. Que perdia algo que lhe estava sendo oferecido. Quase à hora do almoço é que a lembrança estourou forte. Imobilizando-o. Em pânico. Seria tarde demais? Agarrou o telefone. Com o coração batendo-lhe em todo o corpo. Rita custou a atender. Estava lá fora. Vendo se encontrava um pouco de ar. Não. Não havia novidade. Só que se sentia tão cansada. Não. Não encerara coisa nenhuma. Só fizera o almoço. Ir ao quarto? Sentar-se na cama? Do lado dele? Ver que número estava no chão?

Deu em cheio. O bebê podia vir quando quisesse. O problema fora resolvido.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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