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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 202)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 28 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Vinte metros de canal

Lydia Federici

Homens não dão conta da limpeza dos canais. São muito poucos homens para muitos quilômetros de canal. Uma vez que os canais não podem ser encolhidos, o negócio seria aumentar o número de operários. Mas, mesmo dobrando ou decuplicando as pás, os canais de Santos continuariam a apresentar-se nessa beleza que, envergonhados, mostram a quem os olhar.

Parece que o serviço vai ser executado por máquinas. Ótimo. Máquina foi inventada para render mais que braço humano. Em tempo muito menor. Digamos, portanto, que a máquina chegue. Que dê a sua olhada na imundície a limpar. Que mergulhe na lama. Rangendo como toda máquina range. Essa, além de ranger, há de gemer. Gemer de nojo. Urrar de raiva. Porque uma coisa é fazer aquilo para que se foi criado. No caso da máquina, tirar lama de canal. E outra, muito diferente, é ter que aguentar serviço extra. Como a pobre vai ter que fazer. Querendo ou não. Porque os canais de Santos, que poderiam acrescentar um pouco de poesia à paisagem seca da planície, são, na verdade, não riachozinhos piscosos. Mas uma cômoda lata de lixo. Descoberta e mal cheirosa. Com a triste sina de convidar crianças à pescaria de seus guarus e lebistes.

Vejam o que há em vinte metros apenas de um dos canais da cidade.

Uma exposição completa de latas. Grandes e pequenas. Novas, brilhantes, com todas as cores do arco-íris. Velhas, amassadas. Rendadas de ferrugem. Há mais latas de gordura ali do que as variedades que se encontram arrumadas numa boa mercearia do centro. Como isso é possível, não sei. Até uma lata redonda e chata, muito pequenina, de legítimo caviar russo, está meio enterrada na lama. Quem foi o milionário que andou se regalando?

Há um prato fundo quebrado. Mostrando na borda intacta a torre azul de um castelo. Uma tampa de alumínio escora sua invalidez amassada num cabo de vassoura. Três galhos escuros, ramados mas sem folhas, prendem largas placas espumarentas de limo verde e sujo. Enfiado num pau, apoiado sobre a parede côncava de cimento escuro, está um embrulho de pano preto. Bem amarrado. E, ilusão ou não há um toco de vela esbranquiçando ali na borda. Deus! Há uma encruzilhada bem em frente. Quem teve a coragem?

Um peixe de cinquenta centímetros escancara a boca para um monte de camarões cor de rosa. O peixe foi peixe. Talvez uma garoupa pela forma da espinha e da cabeça muito brancas. Agora é apenas o que sobrou de não comível de um bom peixe assado. E os camarões são cascas, pernas, cabeças e rabos de camarões. Haja nariz para aguentar esses restos imprestáveis. Ou o mau cheiro vem daquele monte de pelo cinza que os urubus assustados bicam e esticam?

Há uma grade de berço atravessada no canal. E um travesseiro mostrando a palha. Ensopada. Que os moleques, sem ver os cacos de vidro, atiram para o ar, em aleluia.

Virá a máquina. Limpará toda a sujeira. No dia seguinte, o canal estará limpo?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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