Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d201.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:21:45
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 201)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 26 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Incêndio no apartamento

Lydia Federici

Jantaram depressa. Encolhidos sob e sobre a mesa. Ligaram o aparelho de televisão e os quatro, fora de hábito, sentaram-se no sofá da sala. As duas crianças no meio. Os pais, do lado externo. O sofá não era dos maiores. Mas sobrava lugar, tão juntos se encolheram pais e filhos.

Maria Luiza, apesar das meias de lã do marido e das calças compridas, sentiu as pernas gelarem. Puxou o garoto contra seu corpo. Todos se aconchegaram mais. Mas o frio continuava. A moça foi buscar, o corpo dobrado, a manta vermelha. Só quatro rostos gelados, que a televisão azulava, ficaram aparecendo no topo do retângulo cor de fogo.

Mas o frio continuava. Quando Carlos Alberto sugeriu o mergulho no berço, não houve protestos. Nem das crianças. O latido do Rin-Tin-Tin foi interrompido. Seu rabo desapareceu na escuridão do retângulo. Quatro figuras tiritantes, silenciosas, escaparam, com rapidez, da sala.

Maria Luiza foi deitar as crianças. Calçou-lhes meias de lã. Sobre os pijamas de flanela, enfiou um pulôver já aposentado, uma malha desbotada. Carlos não reclamou. Nem reclamou Luizinha. A moça olhou os dois embrulhinhos de roupa. Que se miravam a rir. Lembrou-se da dor de ouvidos do filho. Abriu a porta do armário. Veio com algo na mão.

"Não. De touca eu não durmo", gritou o menino, cobrindo a cabeça com as mãos. Preferia ficar, então, com dor de ouvidos? E aquilo não era touca. Era um gorro. Como é que ele pensava que os outros, com aquele frio, se metiam na cama? Só com pijama? Ou de camisola? Todo mundo enfiava meias. Ia descobrir agasalhos bem quentinhos. Tio Custódio dormia de boina. Dona Cleide dormia vestida. Com a camisola sobre toda a roupa.

"Mas papai não dorme de gorro". O menino recalcitrava.

"Mas dorme de cachecol. Vá lá no quarto ver, seu bobinho".

Carlinhos voltou murcho. Arrastando as chinelas. Sua irmã já estava deitada. A mãe prendendo as cobertas sob o colchão.

"E então?" O menino enfiou o gorro. Maria Luiza cobriu-lhe as orelhas. Enfiou-o na cama. Juntou-lhe as mãos gostosamente quentinhas. Pelo menos, mais quentes que as suas. Rezaram uma Ave Maria.

"E, Deus do céu, que o apartamento pegue fogo. Amém". A moça endireitou o corpo. Que disparate era aquele? Tinha ficado louco?

"Não. É que papai contou como dorme toda essa gente do apartamento. Se houver... houver um incêndio, vou morrer de rir".

E enquanto o sono não vinha, o menino ria por conta do que um incêndio no prédio lhe mostraria.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série