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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 200)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 25 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Quem não vai pro céu?

Lydia Federici

Akemi, de casaquinho vermelho de pelúcia, com um palito coçava as costas nuas de sua "filha". A boneca de plástico estava no chão. E a bonequinha de carne, dobrada sobre ela, dizia-lhe coisas. Coisas. Coisas ternas, com certeza. Que a voz era doce e meiga. Com meiguice e doçura de mãe.

Com um lenço amarrado na cabeça, a garota levantou o rosto para ver quem a importunava. Sorriu um sorriso de dentes pequeninos e olhos repuxados. E recitou poesia nova. Na sua língua atrapalhada de criança de dois anos.

"Japonês não vai pro céu,
Nem que seja rezadô.
Ele tem cabelo duro
Que espeta Nosso Senhô".

***

E a gente fica pensando. Fica pensando na graça da quadrinha. Mas como ela é mentirosa. Akemi! Japonês vai pro céu, sim. Basta que ele seja um bom sujeito. Essa história de ele ter cabelo duro não é culpa dele, é? Foi Deus quem o fez assim. E se foi Nosso Senhor, o dono do cabelo duro não tem culpa de ter nascido assim. Logo, que Nosso Senhor aguente o espeto que fez.

Japonês pode ir pro céu, sim. Como negro de carapinha também. Esse molejo macio dos que têm a pele escura também é obra do alto. Nosso Senhor há de saber suportar os caprichos que criou.

O que me deixa em dúvida, nesse campo de cabelos, é a transformação que uns homens, chamados cabeleireiros, estão introduzindo na obra original. Não que eu pense que gente que muda forma e cor de cabelo tenha entrada proibida no céu. Capaz! Entrada pro céu é comprada pelas boas ações saídas do coração do homem. Do homem e da mulher. Cabelo empomadado, esticado, afofado, não vale um tostão. O que me preocupa é saber se Nosso Senhor irá identificar as criaturas que ele fez de um jeito. E que se apresentam de outro. Aí é que está o problema.

"Você, Mariquinha, nestes últimos tempos, andou saindo do sério, não, minha filha?", perguntara Ele, olhando os cabelos cheios de mechas prateadas.

"Perdão. Mariquinha é minha mãe. Eu sou a Odete".

Também não sei se Nosso Senhor gostará de acariciar a cabeça de Davi. É goma pura. Como também não sei se o Criador alcançará o alto da cabeleira da Idalina. Tão alta e tão dura de laquê.

E ignoro que sensação terá ao passar os dedos paternais pela ex-carapinha da Benedita. Espichada, unida e espetada de assustar. Um bloco de cimento preto. Ou ruivo. Ou dourado. Também não sei como conseguirá Ele identificar a Raquel de cabelos 'cendre'. A Luíza de cabeça violeta. A Diná de mechas verdes.

Isso é que vai dar confusão. Isso é que pode atrapalhar. Mas os outros, os naturais, duros, pixains, escorridos, pretos, louros ou brancos pela idade, esses não serão problemas. Se pertencerem a boas pessoas, não amolarão a Nosso Senhor, não. Acredite, Akemi.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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