GENTE E COISAS DA CIDADE Quem não vai pro céu?
Lydia Federici
Akemi, de casaquinho vermelho de pelúcia, com um palito coçava as costas nuas de sua "filha". A boneca de plástico estava no
chão. E a bonequinha de carne, dobrada sobre ela, dizia-lhe coisas. Coisas. Coisas ternas, com certeza. Que a voz era doce e meiga. Com meiguice e doçura de mãe.
Com um lenço amarrado na cabeça, a garota levantou o rosto para ver quem a importunava. Sorriu um sorriso de dentes pequeninos e olhos repuxados. E recitou poesia nova. Na sua língua atrapalhada de criança de dois anos.
"Japonês não vai pro céu,
Nem que seja rezadô.
Ele tem cabelo duro
Que espeta Nosso Senhô".
***
E a gente fica pensando. Fica pensando na graça da quadrinha. Mas como ela é mentirosa. Akemi! Japonês vai pro céu, sim. Basta que ele seja um bom sujeito. Essa história de ele ter cabelo duro não é
culpa dele, é? Foi Deus quem o fez assim. E se foi Nosso Senhor, o dono do cabelo duro não tem culpa de ter nascido assim. Logo, que Nosso Senhor aguente o espeto que fez.
Japonês pode ir pro céu, sim. Como negro de carapinha também. Esse molejo macio dos que têm a pele escura também é obra do alto. Nosso Senhor há de saber suportar os caprichos que criou.
O que me deixa em dúvida, nesse campo de cabelos, é a transformação que uns homens, chamados cabeleireiros, estão introduzindo na obra original. Não que eu pense que gente que muda forma e cor de cabelo tenha entrada proibida no céu. Capaz! Entrada
pro céu é comprada pelas boas ações saídas do coração do homem. Do homem e da mulher. Cabelo empomadado, esticado, afofado, não vale um tostão. O que me preocupa é saber se Nosso Senhor irá identificar as criaturas que ele fez de um jeito. E que se
apresentam de outro. Aí é que está o problema.
"Você, Mariquinha, nestes últimos tempos, andou saindo do sério, não, minha filha?", perguntara Ele, olhando os cabelos cheios de mechas prateadas.
"Perdão. Mariquinha é minha mãe. Eu sou a Odete".
Também não sei se Nosso Senhor gostará de acariciar a cabeça de Davi. É goma pura. Como também não sei se o Criador alcançará o alto da cabeleira da Idalina. Tão alta e tão dura de laquê.
E ignoro que sensação terá ao passar os dedos paternais pela ex-carapinha da Benedita. Espichada, unida e espetada de assustar. Um bloco de cimento preto. Ou ruivo. Ou dourado. Também não sei como
conseguirá Ele identificar a Raquel de cabelos 'cendre'. A Luíza de cabeça violeta. A Diná de mechas verdes.
Isso é que vai dar confusão. Isso é que pode atrapalhar. Mas os outros, os naturais, duros, pixains, escorridos, pretos, louros ou brancos pela idade, esses não serão problemas. Se pertencerem a boas pessoas, não amolarão a Nosso Senhor, não.
Acredite, Akemi.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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