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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 197)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
22 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Crioulo esquisito
Lydia Federici
Chovia. Mais chuvisco, propriamente, que chuva. O rapaz, de calças de riscadinho e camiseta branca, limpava o carro,
nos fundos do quintal, dentro da garagem. Era a mania dele: lavar e flanelar a superfície reluzente do automóvel. Cinco, seis vezes por dia. Todas as vezes em que o carro estava ao alcance de suas mãos calejadas.
Olga pegou uma capa velha de plástico, um guarda-chuva de homem e foi para a garagem.
"Bom dia, Venâncio. Vista esta capa e vamos à feira".
"Não precisa, dona Olga. Eu gosto de chuva". Dobrava a flanela, alisando-a com carinho. Dona Olga franziu a testa. Imagine se ia levar o rapaz à feira, sob chuva, sem agasalho nenhum. Insistiu, com ar autoritário. Ajudando-o a enfiar uma das
mangas. Mandou-o pegar duas sacas. Abrir o portão.
"Tome. Leve o guarda-chuva". O crioulo obedeceu. Sem erguer os olhos. E saiu gingando para o portão. O guarda-chuva fechado batendo-lhe nas pernas compridas.
Foram para a feira. Olga guiando com a testa franzida. Aquele rapaz era muito bom. Mas cabeçudo em demasia. Venâncio, duro dentro da capa, olhava para a rua. Sua patroa pensava que ele era de açúcar? Por que não havia de apanhar chuva? Toda a vida
se molhara. Chuva era uma das coisas boas e bonitas deste mundo!
"Eu vou comprando e você vai guardando as coisas nas sacas. Dê o guarda-chuva, Venâncio. Fique perto de mim".
A jovem senhora, em geral, custava a fazer as compras. Gostava de correr de banca em banca. À procura das verduras mais viçosas. Mas naquela manhã, irritada com o mau tempo, meio agastada com seu novo ajudante, decidiu de pular de um para outro
lado da rua. Faria as compras na barraca da Marina. E depressa. Foi escolhendo os pés de alface. Uma chicória. Beterrabas. O rapaz, a seu lado, estendia o braço, pegava as verduras com a mão desajeitada, guardava-as, com cuidado, no fundo da saca.
Não! Os pés de alface não podiam ficar por baixo. Ficariam todos machucados.
Abaixou-se na rua, a capa mergulhando na água da sarjeta. Quando se levantou, viu a moça. Era mulatinha como ele. Tinha os cabelos alourados. Fofos. Uma coroa rendilhada sobre a cabeça. Tapando-lhe o pescoço. Naquela almofada de pixaim em
liberdade, minúsculas gotas de chuva brilhavam. Parecia folha seca de samambaia lá do grotão da fazenda. Coruscante de orvalho. Linda e fresca de fazer chorar.
Quando Olga, com um maço de rabanetes na mão, procurou seu ajudante, Venâncio, com os olhos enevoados, curvava-se sobre a mulatinha distraída.
"Venâncio!" gritou, horrorizada. O rapaz acordou. Baixou a cabeça.
No carro, quis explicar. Só queria encostar o rosto. Sentir o orvalho. Como no grotão da fazenda. Com as samambaias.
Olga não entendeu. O crioulo era esquisito. Mandou-o de volta para a fazenda.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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