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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 196)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mar bravo

Lydia Federici

Ainda não eram oito horas quando os dois, de braço dado, apareceram na porta da pensão. Ele, curvando sua estatura para o tamanhinho frágil dela. Ela, magra e empinada, crescendo para alcançá-lo. Pisavam o chão com cuidado, os olhos estendidos para a frente, além, lá nas lonjuras do mar.

"Que belo aparece, Guido. Olha". Com a mão livre, pequenina e grossa, fez um gesto teatral. Que expôs, aos olhos do companheiro, toda a barra. Da ponta do Itaipu até a Ilha das Palmas. Ele sorriu. Maravilhado.

"Vamos lá pra perto dele, Lina". E, como ela se arremessasse para a frente, ele agarrou-a com firmeza. "Cuidado. Não vê que tem um degrau?"

Riram os dois. Atravessaram as duas pistas da avenida larga. Seguiram por um dos caminhos que separam os canteiros da praia. Pararam no limite do jardim. Não viam a praia deserta. Não viam os armadores de barracas lutando contra o vento que lhes arrancava, da armação, a lona colorida. Não ouviam as imprecações dos pobres coitados. Nem uma ou outra buzinada de um chofer apressado. Nem os sinos do Embaré que bimbalhavam com alegria.

"Ouve o mar como ronca forte, Lina?"

"Parece o Gigino quando dorme...", riu ela. Seus olhos apertaram-se com ternura. Deu uma fungada que pretendeu disfarçar. A mão vermelha do companheiro fechou e escondeu a sua. Continuaram a olhar o mar. De um lado a outro. Aspirando o ar diferente. Frio. Úmido. Uma lufada repentina carregou o chapéu de feltro do homem de costas curvas. Ela deu um gritinho. Ele empinou-se, erguendo os braços. Mas o chapéu rolava no canteiro. Como um moço, em cinco pernadas, ele o alcançou. Voltou triunfante, numa gargalhada, mostrando os dentes desmesuradamente grandes.

"Se o guarda te vê. Guido. Não pode trepar no canteiro". Havia admiração e medo no rosto muito rosado. Ele enterrava o chapéu na cabeça, cobrindo a linha branca da testa que nunca via a luz do sol.

"Eh! Se o guarda me vê, pago a multa e pronto. Vou ficar sem chapéu?"

Sentaram-se num banco. Juntos os dois. Olhos no mar. Mar bravo. Picado. Escuro. A lembrança que tinham do mar não era aquela. Ou estariam enganados?

"Não é verde. Não é azul como o céu. Que engraçado, Guido. É quase da cor de tuas calças. Vergine! O que que você fez nas calças? Derrubou o café? Me lembra, quando chegar na pensão, de passar um paninho molhado!"

Ele tirou do bolso do paletó um lenço escuro e começou a esfregá-lo na perna. Com ar contrito. Envergonhado. Fora a pressa de vir logo ver o mar, sabe?

Um navio apitou. Um apito que os fez estremecer. Apertando-se um contra o outro. Fixaram-se, então, nos navios da barra. Silenciaram. Perderam-se em lembranças. Os navios, de chaminés fumegantes, balançavam no mar escuro. O vento queria empurrá-los para a praia. Eles balançavam. Balançavam.

"Lina. Me leva pra casa. Estou enjoado. Estou com mal de mar".

"Mas Guido caro. Em terra... só de ver?..."


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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