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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 195)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
19 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE A menina magra
Lydia Federici
Não era a primeira vez que Tereza a via passar pela rua. Quantos anos teria? Como descobri-lo se um vestido, de babado
no busto, escorria-lhe, largo e liso, até o meio das canelas? Podia ter doze, até mesmo quatorze anos. Às vezes, tinha atitudes de mocinha. Mas perdia-se também, como criança, a olhar brincadeiras de crianças.
Passava junto aos muros. Caminhando devagar com suas longas pernas. Tímida, seguia de olhos baixos se alguém a observava. Mas livre de olhares, curiosava casas e jardins.
Uma manhã, Tereza apareceu no portão no instante em que a garota por ele ia cruzar. A menina assustou-se. Parou. Tereza viu, de perto, a carinha pálida. Os olhos grandes cheios de susto. Sorriu-lhe. A menina baixou a cabeça e continuou a andar.
Mas, desse quase encontrão, surgiu uma espécie de conhecimento. Um elo de simpatia. A menina sorria para a senhora que lhe sorria. E Tereza, ao vê-la, sentia um aperto no coração. E uma vontade cada vez maior de ajudar a menina magra de vestido de
babado e carinha de fome.
E, num dia em que a moça chegara até o portão para ver os dois filhos mais novos que saíam para a escola, a coisa aconteceu. A visão de sua menina, forte, de pernas gordas, cruzando a magreza escanifrada da carinha de fome, pôs uma frase de
interessada ternura na boca de Tereza. E, desse dia em diante, a menina magra, religiosamente, recebeu o seu almoço.
Às onze em ponto, quando Tereza fazia o prato dos filhos, a menina alta, aparecendo, encolhida, na porta da cozinha, recebia o seu também. Que comia como só os que passaram fome sabem comer.
Uma saia usada e duas blusas meio desbotadas da filha mais velha de Tereza passaram, num embrulho, para as mãos compridas da menina magra. Que recebeu o pacote com ar meio desconfiado. Comida e outras coisas também? Davam-lhe assim, sem mais nem
menos? A menina agradeceu mas ficou de pé atrás.
Houve um dia em que a menina magra não apareceu. Tereza ficou preocupada. Que teria acontecido? Mas no dia seguinte, às onze, a carinha de fome, com os olhos temerosos, surgiu na porta da cozinha. Por que não viera ontem?
"Minha mãe ficou doente. Não saí". E agora estava melhor? Estava. Mas ainda continuava na cama. Tereza fez-lhe o prato. Reforçado. A garota recebeu -o e ficou com ele no colo. Olhava-o sem decidir-se. A moça compreendeu. Pensou um instante, olhando
para as panelas.
"Coma, minha filha. Depois, se você quiser, faço outro prato pra você levar para sua mãe". A menina magra sorriu, ressabiada. E começou a mastigar. A contar daquele dia, Tereza servia almoço para duas pessoas extras. O marido quando soube, sacudiu
a cabeça. Zombava da nova fornecedora de marmitas. Mas não a proibiu de fazê-lo.
Um belo dia o almoço atrasou. A menina magra chegou e Tereza ainda rodava na cozinha. "Olhe. Enquanto espera, quer dar uma varridinha aí no quintal?"
Bem que ela desconfiara. Queriam explorá-la. Sumiu. Nunca mais apareceu.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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