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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 193)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 17 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Pescadores de canal

Lydia Federici

A ponte foi feita com outra finalidade. Mas ela serve mesmo para a meninada da zona. Sua dona absoluta. Que nela se debruça ou senta para as longas tardes de pescaria. Não sei se é a ponte que está à mão dos meninos. Ou se a garotada é que está a jeito de aproveitar a ponte. Nas férias, a ponte é dos moleques. Quem quiser atravessá-la que pene. Pulando sobre pernas. Latas e baldes. Embrulhando os pés em barbante. E quando as férias terminam, é só bater um feriado no meio da semana, e pronto. A luta é a mesma.

Não há combinação entre eles. Mas é só aparecer o primeiro e a pescaria ganha logo uma dúzia de adeptos. Saem dos portões. Surgem da porta larga dos prédios de apartamentos. Uns carregam, abertamente, latas e baldes. Outros escondem, sob a camisa, peneiras velhas. Ou reluzindo de novas.

Em dez minutos, a ponte sobre o canal fica juncada de garotos. Que sentam no chão de cimento, as pernas dependuradas sobre a água suja que escorre lentamente. Outros, atrasados, passam fios pelo aro das peneiras. Chega um, chacoalhando um balde enferrujado. De cuja alça pende uma corda. Esse pega água do canal mesmo. Ao contrário dos outros que já vieram com suas latas, grandes ou pequenas, carregadas de água da torneira.

Quinze minutos depois do aparecimento do primeiro pescador, quem quiser atravessar a ponte estreita tem que prestar muita atenção. Para não chutar latas. Ou pisar meninos. Toda a ponte, de ambos os lados, parece um barco de pescaria. Atopetada de meninos que pescam. De meninos que olham a pescaria. Quando aparece alguma menina perguntadeira, há sempre um irmão que a manda calar a boca.

"Pode olhar. De bico calado. Ou então, suma. E não vá espalhar que eu peguei a peneira da cozinha, ouviu, linguaruda?"

Durante horas ficam eles, ali, em silêncio, quase imóveis, a pecar.

Que pescam eles? Pois, os peixinhos do canal. Que havia de ser? Garoupa?

O rei dos pescadores da ponte é Zé Roberto. Pode haver vinte garotos. Com peneiras. Latas de goiabada de fundo furado. Com coador de macarrão. Puçá de filó. O campeão da pescaria é sempre Zé Roberto. Ele é quem pega os lebistis mais bonitos. Guaru barrigudinho quase não dá em sua peneira de taquara. Só lebistis. Com estrias verdes. Vermelhas. Com manchas da cor do mar ou do céu. Tem uma sorte Zé Roberto! Os moleques acham que é por causa de seus olhos azuis. Que atraem os peixes bonitos para a sua peneira. Por essa razão Zé Roberto é admirado por todos. Respeitado. Invejado, até. Mas muito querido.

Nesta última pescaria, Zé Roberto apareceu. Está usando calças compridas. Não rancheira. Calças compridas de verdade. Calças de homem. Agora só anda com os rapazes da outra rua. Abandonou a pescaria. "Ficou bobo", diz o irmão menor.

Ah! Zé Roberto. Pescando "peixinhas" de cabeleira alta? Se você soubesse a saudade que você vai sentir da ponte do canal. Onde você se sentava para pescar lebistis e guarus!


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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