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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 191)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 14 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Bolinho de arroz

Lydia Federici

Era cedo. Latas de lixo apanhavam sol na beirada do passeio. Todas juntas, enfileiradas, pareciam soldados em dia de parada. Tinham até certo garbo assim como estavam, diante de um prédio de apartamentos. Desses de três andares. Umas eram verdadeiras e próprias latas de lixo. Com tampa. A folha de zinco rebrilhando ao sol. Outras, por medida de economia, tinham sido transformadas em latas de lixo. Originalmente, eram feitas de óleo.

Numa dessas latas de gordura, atopetada até em cima, uma boa panelada de arroz cor de rosa formava um chapéu de cone. Pintalgado de tiras vermelhas de casca de tomate. E de moscas pretas gordas e luzidias.

Uma mulher suja passou pela rua. Parou diante das latas de lixo. Não era velha de idade. Velha de miséria, de sujeira e de desgraças, sim. Ficou olhando o arroz. Com a mão encardida coçou a cintura. Apanhou um punhado de grãos. Cheirou-o. Deixou-o cair novamente na lata. Limpou a mão na saia. Olhou para o prédio de janelas abertas e vazias. Sacudiu a cabeça. Levantou um punho. Murmurou alguma coisa e seguiu caminho. Chutando, com os pés descalços, a poeira da rua. Continuando a dizer coisas ininteligíveis.

Dois minutos depois, uma senhora de escuro, bem arrumada, passou pela rua. Vinha sorridente. Apanhando sol nos cabelos esbranquiçados. Parecendo sentir em todo o corpo a alegria da manhã bonita. Ao dar com a pirâmide de arroz, estacou molemente. Seu sorriso murchou. Balançou a cabeça com pena. E pôs-se a andar. As mãos unidas em desalento. Sem a anterior alegria. Sobrancelhas franzidas substituíram o sorriso que até há pouco lhe enfeitava o rosto.

Veio o caminhão do lixo. As latas foram despejadas. Com indiferença. Sem comentário algum. Com certeza, comida desperdiçada é coisa corriqueira.

E a gente se pergunta: com vida difícil, falta de mantimentos, tanta miséria pela cidade, não é um crime desperdiçar comida?

Mas, se ninguém comeu arroz, que se pode fazer com ele?

Ué! Guarde na geladeira para o dia seguinte. Ninguém gosta de arroz requentado? Aqueça-o em banho-maria. Transforme-o em arroz de forno. Faça bolinho de arroz. Jogar fora é que não. Não estamos em época de jogar fora toda uma panelada de arroz. Há muita gente, aqui em Santos mesmo, precisando até de um pedaço de pão. Quanto mais de arroz. De feijão. De carne. Se não tiver uma empregada que queira levar o que sobrou para a família, dê as sobras limpas para o filho de sua lavadeira. Ou então aproveite-as você mesma. Qualquer livro de receitas culinárias mostra, hoje, a arte de aproveitar as sobras. Transforme seu arroz bem temperado em bolinho de arroz. A receita? Telefone para Ofélia Annunziato. Ela lhe dará dez modos de fazê-lo.

E se, Deus louvado, você cismar em jogá-lo fora, faça-o de forma discreta. Embrulhe-o em jornal. Esconda-o no fundo da lata de lixo. E, ao fazer isso, reze. Reze para que você sempre possa viver em fartura. Sem nunca ter que lamentar o que desperdiçou.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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