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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 190)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
12 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE O pai de Jeferson
Lydia Federici
O rapaz deixara mocidade e ilusões para trás. Sem casar-se. Não casara e ninguém sabia a razão. Carinhoso e afetivo ele
era de sobra. Mas não casava e pronto. Nada ia até o casamento. Nenhum namoro chegava a tanto.
José, o rapaz solteirão, era, em casa, o amor da mãe. Que vivia para ele. Era o deus terrestre de três velhas tias rezadeiras. Que por ele viviam a desfiar rosários e refazer novenas. Era o patrão de uma coleção de canários. Que só cantavam para
ele. O amo querido de três "boxers". Que só para ele sabiam sacudir o toco de rabo.
Havia ainda, no seu reino de amor, a cozinheira. Preta murcha e sorumbática. Que, exatamente nove meses depois de um primeiro e único domingo de folga, ganhara dos céus um negrinho arroxeado. Para a cozinheira triste, José também era um pequeno
deus. Que a arreliava. Que ria de sua cara sem sorrisos. Mas que, num dia de desespero, soubera conservar-lhe a vida. Protegê-la. Encorajá-la. E que a defendia sempre das alfinetadas das tias rezadeiras.
E para Jeferson, então, o "seo" Zé era tudo. O moleque de seis anos só sabia rir quando José estava em casa. As coisas más que deixava de fazer não era por medo das palmadas da mãe. De mão tão pesada. Nem por causa da gritaria das tias. Não fazia
artes porque não gostava de ver "seo" Zé de cara fechada. Passando por ele sem lhe falar. Sem lhe coçar a carapinha cerrada. Isso, para Jeferson, era o impossível de suportar. Daí, em geral, o seu bom comportamento. O prazer triste com que fazia
pequeninas coisas pedidas.
Matriculado num curso pré-primário, Jeferson aprendeu algumas coisas. Soube, pela primeira vez, que todo menino, além da mãe, tem também um pai. Quem era seu pai? A preta murcha e triste derrubou uma pilha de pratos. As tias surgiram na cozinha.
Com o falatório e a confusão, o garoto não recebeu resposta. À noite, quando fez a mesma pergunta, sua mãe mandou-o dormir. Estava muito cansada para conversar. E estava sempre, ou ocupada, ou apressada, ou muito cansada para dizer ao moleque quem
era o pai "de tu".
Mas na escola, vendo e ouvindo, o pretinho tirou suas conclusões. Pai é o homem que mora co'a gente. Que vai trabalhar pra ganhar dinheiro pra comprar comida, roupa e balas pra gente. Que conta história. Que não deixa a mãe bater em "nóis" quando a
gente faz alguma coisa feia. Ou que ela pensa que fez. Pai leva os filhos no circo. Sai correndo pra buscar remédio na farmácia. Dá dinheiro pro cinema. Defende a gente quando os outros querem brigar. Pai é isso tudo.
Jeferson soube, então, quem era seu pai. Não disse nada a ninguém. Seus olhos mansos derretiam-se em ternura gostosa quando ouvia a voz de seu "pai".
Veio o dia do papai. Jeferson reparara numa carteira que começava a rasgar-se. Via-a sempre quando recebia uma nota para o cinema. Para o picolé. Na feira, diante de casa, com suas economias, comprou uma carteira amarela. A mais bonita que havia.
E, no domingo, com os lábios tremendo, sem dizer nada, com olhos muito mansos, deu-a no fundo do quintal, para seu "pai".
É por isso que José usa agora, no bolso de seu terno casimira inglesa, um porta-notas de plástico amarelo.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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