GENTE E COISAS DA CIDADE Um ponto antes
Lydia Federici
Como aconteceu, talvez não haja ninguém que consiga explicar. O caso é que, sempre, na cidade, se pôde tomar o bonde
uma parada antes do ponto final. Às vezes, até dois pontos antes. Sem pagar passagem extra, bem entendido.
Quando a City era dona dos bondes, os motorneiros portugueses, embora ninguém tivesse apartado a campainha para descer, sorriam, de longe, para os que se agrupavam no penúltimo ponto. Sorriam e brecavam o veículo. Esperavam todos se acomodarem. E
sem pressa nem retinir de campainhas, tocavam os bondes cor de ferrugem avinhada, para a Praça Mauá. Para a Rui Barbosa. Ou para a dos Andradas.
Depois que o serviço de transportes coletivos passou para a autarquia, a cômoda tradição continuou. Pensaram em modificar o sistema. Houve grita. Desistiram da ideia. Afinal, não havia grande prejuízo. Por que se haveria de ir contra o hábito de
todo um povo? Aqui, ou cem metros mais adiante, a diferença não existia. E, se existisse, só serviria para beneficiar a boa ordem e presteza do serviço. Daí, em Santos, o ponto final da linha ser sempre, para os que iniciam viagem, uma parada
antes. Que é que tem?
Acontece que o ponto final de cinco linhas passou, há tempos, com a modificação do trânsito, a ser a Rua Frei Gaspar, esquina da São Francisco. Os bondes vêm pela Amador Bueno, viram a Frei Gaspar na sua última quadra e "ponto final". O penúltimo
ponto é, portanto, na Amador Bueno. E é ali que, da manhã à noite, enquanto circulam bondes, todos os passageiros se reúnem para o assalto aos elétricos. Ninguém caminha até o ponto final. Bobagem. Por que gastar sola? Ali, em frente da mercearia,
é que está bom. Principalmente quando as maçãs argentinas cobrem, com seu perfume, o cheiro da gasolina e do óleo.
Acontece que a gente que ali espera sua condução mora no Mercado, na Nova Cintra, no Campo Grande. É, em geral, gente modesta. Cansada do trabalho. Com feijão no fogo. Filhos a traquinar pelas ruas. Daí sua pressa. Sua impaciência.
Acontece, porém, que alguns dos bondes são fechados. E, obedecendo a ordens superiores ou por deliberação própria, os cobradores dos fechados não abrem a porta traseira. Ora. Tradição é tradição. Hábito é hábito. Que novidade é essa? Desde quando
não se toma bonde um ponto antes?
E sai barulho.
"Vai abrir ou não vai?" gritam os que se sentem logrados. Guarda-chuvas batem na porta corrediça. Punhos irados retumbam sua irritação contra a lata barulhenta. Parece começo de revolução. Mas não é nada, não. Apenas raiva a explodir contra uma
medida que o povo não quer entender. E, por fim, quando o bonde faz a curva, impassível, começa toda uma grande correria rumo ao ponto final. Correria, resmungos e impropérios em bom português.
E assim está a coisa. Para os não interessados, a cena tem sua graça. Mas para o cobrador e para os que se veem obrigados a correr... que desgraça!

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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