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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 183)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Recado a um médico

Lydia Federici

Ninguém sabe como aconteceu. Passeavam os quatro. A velhinha com a neta mais moça na frente. Setenta e cinco anos de luta, de braço dado com 12 bem gordinhos e risonhos. Atrás, ainda lua-de-melando, a outra neta com o marido. E aconteceu. Um ladrilho levantado. Um pé trôpego que tropeça. Um corpo cansado que não consegue equilibrar-se. O resto foi susto. Foi dor.

Um tombo tão sem propósito. Tão à toa. E, no entanto,nem ajudada por braços fortes e cuidadosos, a velhinha pôde levantar-se. Carregaram-na, o neto e um chofer, para o carro. Rumaram, em agonia, para o hospital mais próximo. A velhinha, de lábios apertados, olhava, sem compreender, para os braços que lhe amparavam com cuidado.

"Doe muito, Nonna?", perguntavam-lhe, limpando-lhe o rosto empapado de suor.

E ela, perdida, tirando os olhos do braço quebrado, procurava fixar o rosto agoniado de onde partia, a cada instante, a mesma pergunta aflita. Sacudia a cabeça levemente. E dizia que não. Não muito. Só um pouco.

Quando chegaram ao Pronto Socorro, a velhinha gemeu. Quis saber o que iam fazer com ela. Havia medo, um medo insensato, no coração que batia tão sem força. O nego procurou tranquilizá-la. Explicou-lhe que iam tirar, com certeza, uma radiografia. Uma fotografia interna, do osso, não sabe como é? Só para ver o que houvera. Que ficasse sossegada. Não iam machucá-la, não. Os médicos eram muito bons. E, como o mesmo susto continuava a morar nos pobres olhos secos, ele prometeu:

"Nós ficamos a seu lado, Nonna. Não precisa ter medo, não".

E ficaram. Quase mortos de pena, mas ficaram. Ficaram tanto quanto puderam. Mas, passada a fase dos exames, a velhinha teria que ficar só. Só com os médicos. Na sala de operações. Ela gemeu baixinho através dos lábios cerrados. Não sentia mais dor. Dor nenhuma em lado algum. Mas tinha medo. Medo de estar sozinha. Medo de não saber o que todos aqueles homens de branco, gentis mas distantes e desconhecidos, iam fazer com ela. Cortar-lhe-iam o braço? Mas que braço era aquele assim todo virado? Uma lágrima enevoou-lhe a visão. Um suor gelado empapou-lhe o corpo. Por que a deixaram sozinha?

E então ouviu chamarem-na. Era uma voz desconhecida. Mas muito amiga.

"Que é isso, vovó? Não tenha receio. Isto não é nada. Não olha para o braço. Vire o rosto para lá, vovó".

Ela viu o rosto moreno. O sorriso quente. Dois olhos muito bons que a olhavam com carinho. Diziam-lhe que não precisava ter medo. Ele era médico, sim. Mas era um novo neto que ficaria, firme, a seu lado.

E ela deixou de ter medo. Não mais se sentia só. Tinha alguém ao lado.

***

Doutor. Sua paciente, como sabe, vai bem. Já me contou, dez vezes, como o senhor foi bom. Não lhe sabe sequer o nome. Velhinha assustada não guarda nomes. Mas posso jurar-lhe que do médico que a chamou de vovó ela não esquece. Obrigada, em nome dela, doutor, por ter sido um homem. Um homem de ciência. E, principalmente, um homem que usou, com ternura, seu coração.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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