Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d181.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:20:25
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 181)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 2 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mar rico

Lydia Federici

Que o mar é um poço de surpresas, é. Há tempos, uma crônica contou a história de um picaré milagroso. Que, puxado quatro vezes, por um peixeiro-pescador, trouxe, a cada arrastão, quatro notas de diferentes valores. Totalizando mil e novecentos cruzeiros.

Quem soube da história, ou riu, com descrédito. Ou sorriu com inveja. Não acreditaram os que nunca se meteram a tirar nada do mar. Mas os pescadores não duvidaram. Porque, em anzol e rede, muita coisa não marinha costuma aparecer.

Mar é arca de surpresas. Mas, Pedro abençoado, como é que vai parar dinheiro nas ondas: Que se pesquem notas, vá lá! Mas quem é o louco que as larga no mar?

No entanto, acontece. Elas não caem do céu, não.

Zé, por exemplo, no meio do mês, de bolso vazio, encheu um vale. À tardinha, saindo do emprego, passou pela caixa e guardou os oito mil no bolso da camisa. Que era bem fundo. E onde não guardava um lenço ou outra coisa qualquer que, retirado com pressa ou descuido, pudesse espalhar pelo chão a mísera boladinha.

Zé trabalhava num bar da praia. Morava perto da praia. Junto, ou, pelo menos, não muito distante do local de luta. Vantagem que lhe economizava o dinheiro da condução. Nesse dia, como sempre, pôs-se a andar.

O sol começava a esconder-se atrás dos morros. Fazia calor. Porque era verão. Verão gostoso. De dias quentes. Um vento leve soprava, manso, do mar. Zé sentiu vontade de receber aquela carícia fresca no peito acalorado. Rumou para a praia. Atravessou o jardim.

O céu, pras bandas do Itaipu, estava de um cor de rosa cheio de suave calor. O mar, muito liso e quieto, só de ver refrescava. Fazia imaginar coisas. Zé não era poeta. Poeta de ver e sonhar. Zé era um trabalhador suado. Cansado. Que sentia, no corpo, calor. Que só um mergulho real podia refrescar.

Foi o que Zé, feliz da vida, fez. Avançou para o mar. Ninguém na praia. Desabotoou a camisa, tirou as calças, descalçou as sandálias. Endireitou o 'short' surrado na cintura. Empilhou a roupa num montinho e correu para o mar.

Foi um banho delicioso. Desses que descansam. Refrescam. Tonificam. Quando, na avenida, as luzes pisca-piscaram, Zé, com pena, deu um último mergulho. Procurou a roupa. Agarrou a camisa. Sacudiu-a. Pegou as calças. Sacudiu a areia. Dobrou-as, enrolou-as, pô-las sob o braço. Enfiou as sandálias e, assobiando, foi para casa. Novo em folha.

Quando se lembrou do dinheiro, ele não estava no bolso. Com certeza, ao sacudir a camisa, sacudira fora as notas de mil. Voltou, correndo, à praia. A maré subira. Não encontrou nenhuma das oito notas.

Essa é uma das razões de haver pescas milagrosas. Não são almas generosas que enriquecem o mar. São, feliz ou infelizmente, almas descuidadas.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série