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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 180)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 1º de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Molecagem

Lydia Federici

Não chame o técnico, não, minha senhora. Não é necessário. Conto-lhe como foi. Aponto-lhe o defeito. Qualquer um pode resolver o problema.

Era um grupo de garotos. Garotos crescidos. Rapazinhos já. Passeavam pela rua. Sem pressa. Pareciam não ir para lugar algum. Flanavam apenas. Rindo muito. Olhando tudo. Falando muito pouco. Felizes como eles só.

Passaram pelo muro alto. Fundos de uma casa. Dessas muito antigas que se escondem dentro de um grande e abandonado jardim. Com 100 metros de fundos, além do pomar e do galinheiro, entouceirados de bambu. O mais espigado dos rapazes estendeu o braço. À toa. Só para pegar uma folha. Coisa que lhe distraísse a vagabundagem das mãos. Não alcançou. Nem pulando. O muro era alto. Mas tinha um rebordo a jeito de firmar o pé. Foi assim que começou a pilhagem.

Desprezaram as varas finas. Largaram-nas pelo passeio. O canivete, aparecido não se sabe de onde, continuou a ser utilizado. Agora, para cortar os gomos dos bambus mais grossos. Todo o grupo, rindo e brincando, fez o seu canudinho. Pra que? E quem sabe? Só para ocupar as mãos. Foi o jeito que encontraram para encher o tempo. Tapando uma extremidade, um deles começou a assobiar. A orquestra formou-se a seguir.

Mais adiante, pelo chão, havia um mundo de retângulos de papel. Anúncio de inauguração de um novo salão de barbeiro. O moleque encarregado de distribuição, cansado com certeza, resolvera liquidar de vez o assunto. E fizera aleluia com os convites cor de rosa. Estavam ali. Ninguém os quisera. Há tanto papel pela rua. Pra que serviria aquilo?

Serviu para um dos garotos. Que o enrolou, bem fininho, por uma das pontas. Enfiou-o no canudo. E assoprou com força. Em direção a uma janela escancarada.

"Que ideia, Mico. Agora tu 'foi' grande". Os rapazes recolheram a papelada. Todos eles, entusiasmados, passaram a construir foguetes. Andavam. Paravam. Olhavam. E atiravam contra janelas abertas. Acertavam pouco e erravam muito. Mas, pouco a pouco, foram aperfeiçoando a pontaria.

Foi quando um descobriu a grade. A casa quase sobre a rua, a sua casa, minha senhora, estava silenciosa e fechada. A rua, àquela hora, deserta. O alvo, brilhante, atraía-os. Fizeram apostas. Quem espetaria mais foguetes na grade furadinha? Foi assim que a parte externa do aparelho de ar condicionado se encheu de convites graciosamente enrolados. Não ficou um vão livre.

É por isso, minha senhora, que seu climatizador não funciona. Não chame o técnico, não. É só pegar uma escada e livrar a grade entupida. Qualquer um pode fazer isso.

Foi um velho senhor aposentado que me contou o caso. Por que não tomou providências na hora, espantando os rapazes? Mas, minha senhora, quem é que pode com eles?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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