Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d175.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:20:01
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 175)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 26 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Conclusão errada

Lydia Federici

Muita, muita coisa acontece em bonde. Cuidado, senhores passageiros.

***

O senhor esperou o bonde parar. Correu os olhos pelos bancos. Sem pressa, escolheu um onde poderia sentar-se. Agarrou-se ao balaústre, olhando bem a altura do estribo. Onde, depois, apoiou o pé com cuidado. Viu-se logo que esse comportamento calmo, calculado, cuidadoso, acompanhava, com perfeição, todo seu aspecto físico. Afobação ou estabanamento não se casariam com alguns fios brancos que lhe luziam nas têmporas. Nem com o terno impecável. De corte severo. Muito menos com a gravata de preço.

De forma discreta, pediu licença para passar. Cruzou três pares de pernas encolhidas. Evitando, ao máximo, incomodar os passageiros. Sentou-se, ereto, no lugar vago. Entre um rapaz que lia uma revistinha; e que voltara a tamborilar, nas costas do banco, com um pente, o ritmo de um samba. E uma moça redondinha. De saia justa. Cuja barra ela, à custa de puxões, insistia que lhe cobrisse os joelhos.

O senhor distinto, antes de encaixar o corpo no banco, bem para trás, teve o cuidado de tirar de porta-notas o dinheiro da passagem. Abriu também o jornal. Dobrando-o cuidadosamente pelo meio. Numa tira comprida. Daquele jeito que só os homens sabem fazer quando querem, sem incomodar os vizinhos, ler as notícias em lugar apertado. Todas essas pequeninas coisas, tão raras hoje, atestavam que aquele passageiro era todo um grande senhor. Educado. Fino. Distinto. Depois de três minutos de preocupação, a moça redondinha abandonou, inconscientemente, sua postura tesa. Esqueceu-se da saia que subia. Deixou a mão repousar, relaxada, sobre a bolsa grande.

Passageiros desciam. Poucos. Passageiros subiam a cada parada. Aos grupos. Mas no banco do senhor distinto, não houve modificação. Tudo era paz.

Pouco antes da General Câmara, o senhor dobrou o jornal. Olhou a avenida e fez menção de levantar-se. Chegou a erguer o corpo mas tornou a largá-lo sobre o banco, com um ar de incompreensão. Sentara-se tão bruscamente que a saia da moça subiu dois dedos. Arrepanhada pelo homem desequilibrado. Ela endireitou-a, com um muxoxo. Encolheu-se na ponta do banco. Espremida contra o balaústre.

Quando o bonde entrou na General Câmara, a moça, com um susto, sentiu algo estranho. Retesou-se e, com olhar de censura, encarou, firme, o senhor. Este, olhos perdidos na nuca do motorneiro, parecia atarantado. Recolheu, apressado, a mão de sob o paletó que abrira e, muito duro, encolheu-se.

A moça pensou: "Fie-se em cara distinta. São todos uns aproveitadores". E desceu, com ar ofendido, um ponto antes da Praça Mauá. Pela entrevia mesmo.

Foi então que o senhor, com um suspiro, abriu o paletó e ficou lutando para tirar, de um dos vãos do banco, a corrente de ouro do relógio que ali se prendera. Prendera-o também.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série