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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 172)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 22 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Praia gelada

Lydia Federici

Tudo é uma questão de hábito. Se isto acontecesse há coisa de trinta ou quarenta anos, o fato passaria totalmente desapercebido. Hoje, não. O caso é que, naquele tempo, praia de Santos, por mais que brilhasse o sol, por mais escaldante que fosse oar, vivia deserta. Ela, a praia, ainda não tinha sido descoberta. O mar, sim. Mas praia, não.

Naquele tempo, praia era, junto aos trilhos do bonde, um matinho ralo, eriçado de carrapicho que banhistas calçados, resmunguentos, atravessavam a correr. Era uma faixa de areia úmida, perto do mar. Que só servia para espetar estacas em forma de cruz. Onde, envergonhadas, senhoras, a quem o médico recomendara uma série de banhos, equilibravam roupões amplos e compridos. O mar, então, era visitado. Parcamente usado. Mas a praia, essa, só de passagem. Na corrida.

Pouco a pouco, tudo começou a mudar. Descobriu-se que, tão bom quanto o acariciante banho de mar, era o banho de sol nas costas nuas. Um preguiçoso eurecou que a areia seca, morna e macia, era uma gostosura para estirar o corpo vadio. Servia, também, para namorar. Era bom para criança brincar. Ótimo para marmanjo chutar bola. A praia, então, foi descoberta. Por todos. Perdeu o seu mato vagabundo. Foi ajardinada em parte. Embelezada de ponta a ponta. Tornou-se o ponto de maior atração da cidade. Virou salão de beleza. Lugar de descanso. Sala de visita. Campo de esporte e de saúde. Biblioteca. Alameda de passeios vespertinos. Lugar de cavação. De sonho. Restaurante.

Praia serve a qualquer hora. Com sol ou ao luar. É procurada e usada por qualquer um. Dos três meses aos que, por 360 vezes, fizeram os três meses. Na praia faz-se de tudo. Inclusive, por curtos períodos, morar. Faz-se Carnaval na areia. Quermesse. Missa. Desfile. Festa a Yemanjá.

Praia de Santos, descoberta, enxameou de gente. Enformigou-se lindamente. Inverno ou verão, era suficiente haver sol para que sua areia levemente acinzentada desaparecesse sob barracas, guarda-sóis e maiôs. E, mesmo não brilhando o sol, o espetáculo continuava. Todo mundo havia descoberto que andar quase nu é que é bom. E, pra andar assim à vontade, só na praia. Praia é um trapinho no corpo. Uma sandália japonesa defendendo a sola do pé. Um chapéu de cone no cocuruto. Só. E olhe lá. E tome praia o ano todo.

Acontece, porém, que o clima deu de mudar. Santos, de inverno de folhinha, começou a ter inverno de fato. Não adianta explicar ao boletim meteorológico que estamos longe do Polo Sul. E que nada queremos do Polo Sul. Ou Norte. Quando chega o inverno, vêm essas infames ondas de frio. A praia gela.

Ora. Traje de praia é justamente falta de traje. Por isso ela é o que é! Como despirmo-nos neste gelo? Mais gelado ainda na praia? E quem sente gosto em ir pra praia encasacado? Encachecolado? Com meias, botinas e boinas?

Daí a solidão em que vive, triste, a praia bonita de Santos, quando, num dia sem sol, bate o vento gelado do Sul.

Não tem cabimento, não. Praia gelada não nos serve. Fica triste demais.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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