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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 171)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

O sino atrapalha

Lydia Federici

Houvera festa em cima até altas horas. Festa de gente nova. Dançadora de 'twist'. Espatifadora de garrafas. Adepta de conversa gritada e risada de louco. De manhã, o barulho dos latões de lixo e o ruído da rua movimentada cortaram-lhe o sono. Quis voltar a dormir. Uma Angela Maria qualquer maltratava, com atraso, a 'Noiva'. Virou-se na cama. Cobriu a cabeça com o travesseiro. Quando começava a adormecer, acordou num sobressalto. Sufocado. Acalorado. Atirou fora as cobertas e resolveu levantar-se. Espreguiçou-se. Pôs os pés no chão, bem sobre os dois chinelos emparelhados. Sorriu satisfeito com a proeza e, de repente, sentiu vontade de fazer um pouco de ginástica. Diante da janela aberta. Por onde entraria o ar puro da manhã.

Da janela fronteira, a três metros de distância, a Angela Maria agoniada arregalou os olhos e calou-se. Ué! Nunca vira um homem de torso nu? Pra que tanto espanto? De lá de baixo, o cheiro empesteante do carro do lixo invadiu o quarto.

"Estou farto desta bagunça". Coçou a cabeça, desanimado. Esquecido da vontade de fazer ginástica. De cheirar ar puro. "Mas onde é que, em Santos, haverá um canto sem paredes, sem vizinho, sem barulho. Só de paz?"

***

Sei de um lugar, meu senhor. Não. Não é um parque arborizado, com alamedas artificiais. Cheias de sombra e de silêncio. Também não é praça grande. Com espaço livre que cheira a asfalto, a gasolina, a óleo queimado. Tampouco é jardim de praia, colorido e tratado apesar dos maus tratos de futebolistas e de matronas reumáticas.

É um bom pedaço de chão, meu senhor. Não. Lá não. Aqui mesmo, do lado de cá dos morros. O único lugar em que, olhos cansados de paredes ou do verde irrequieto do mar, ainda conseguem encontrar a quietude repousante do capim. Pra dizer a verdade completa, essa área já foi recortada por algumas avenidas asfaltadas, sim. Mas é lugar de sossego. Silencioso de barulhos humanos. Tem jeito de mato. Oferece paz de natureza. É mato mesmo. Com espinheiras. E capim a perder de vista na planura quase uniforme.

Onde fica? Na Ponta da Praia. Na parte interna do bairro extenso. É certo que já foi mais mato do que é hoje. Como amanhã será menos mato do que hoje. Coisas do progresso populacional. Mas ainda há um bom mundo de pacífico campo verde por ali. Sem vizinhos cantadores. Sem vizinho espiador. O ar é puro. Quando o sol esquenta, o cheiro bom de 'gordura' chega a doer no nariz. É tão fazenda aquele pedaço de chão santista que até o mugido de uma vaca dá a pincelada final. Aquilo, meu senhor insone, cansado e farto, não é cidade. É mato. É sossego. É vastidão tranquila e vazia. É silêncio. Silêncio à noite e pela manhã. Perdão. Lembrei-me agora. Pela manhã, não. Há um sino que bimbalha às cinco. Sonoro e exigente, a acordar toda a zona. Como se hoje todo mundo não usasse despertador.

Mas, meu senhor, se não fosse pelo sino, o lugar estaria a calhar, não?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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