GENTE E COISAS DA CIDADE O sino atrapalha
Lydia Federici
Houvera festa em cima até altas horas. Festa de gente nova. Dançadora de 'twist'. Espatifadora de garrafas. Adepta de
conversa gritada e risada de louco. De manhã, o barulho dos latões de lixo e o ruído da rua movimentada cortaram-lhe o sono. Quis voltar a dormir. Uma Angela Maria qualquer maltratava, com atraso, a 'Noiva'. Virou-se na cama. Cobriu a cabeça com o
travesseiro. Quando começava a adormecer, acordou num sobressalto. Sufocado. Acalorado. Atirou fora as cobertas e resolveu levantar-se. Espreguiçou-se. Pôs os pés no chão, bem sobre os dois chinelos emparelhados. Sorriu satisfeito com a proeza e,
de repente, sentiu vontade de fazer um pouco de ginástica. Diante da janela aberta. Por onde entraria o ar puro da manhã.
Da janela fronteira, a três metros de distância, a Angela Maria agoniada arregalou os olhos e calou-se. Ué! Nunca vira um homem de torso nu? Pra que tanto espanto? De lá de baixo, o cheiro empesteante do carro do lixo invadiu o quarto.
"Estou farto desta bagunça". Coçou a cabeça, desanimado. Esquecido da vontade de fazer ginástica. De cheirar ar puro. "Mas onde é que, em Santos, haverá um canto sem paredes, sem vizinho, sem barulho. Só de paz?"
***
Sei de um lugar, meu senhor. Não. Não é um parque arborizado, com alamedas artificiais. Cheias de sombra e de silêncio. Também não é praça grande. Com espaço livre que cheira a asfalto, a gasolina, a
óleo queimado. Tampouco é jardim de praia, colorido e tratado apesar dos maus tratos de futebolistas e de matronas reumáticas.
É um bom pedaço de chão, meu senhor. Não. Lá não. Aqui mesmo, do lado de cá dos morros. O único lugar em que, olhos cansados de paredes ou do verde irrequieto do mar, ainda conseguem encontrar a quietude repousante do capim. Pra dizer a verdade
completa, essa área já foi recortada por algumas avenidas asfaltadas, sim. Mas é lugar de sossego. Silencioso de barulhos humanos. Tem jeito de mato. Oferece paz de natureza. É mato mesmo. Com espinheiras. E capim a perder de vista na planura quase
uniforme.
Onde fica? Na Ponta da Praia. Na parte interna do bairro extenso. É certo que já foi mais mato do que é hoje. Como amanhã será menos mato do que hoje. Coisas do progresso populacional. Mas ainda há um bom mundo de pacífico campo verde por ali. Sem
vizinhos cantadores. Sem vizinho espiador. O ar é puro. Quando o sol esquenta, o cheiro bom de 'gordura' chega a doer no nariz. É tão fazenda aquele pedaço de chão santista que até o mugido de uma vaca dá a pincelada final. Aquilo, meu senhor
insone, cansado e farto, não é cidade. É mato. É sossego. É vastidão tranquila e vazia. É silêncio. Silêncio à noite e pela manhã. Perdão. Lembrei-me agora. Pela manhã, não. Há um sino que bimbalha às cinco. Sonoro e exigente, a acordar toda a
zona. Como se hoje todo mundo não usasse despertador.
Mas, meu senhor, se não fosse pelo sino, o lugar estaria a calhar, não?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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