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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 170)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 20 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Férias na praia

Lydia Federici

Primeiro, a gente vê um banguelinha sorridente. Roncando numa patinete. Logo atrás, ziguezagueando, um menorzinho, de cabelo espetado, vai fazendo voar, seguro pela mão que inventa 'loopings' impossíveis, um avião de plástico. Tão pequeno que é preciso ter olho para descobrir a mancha azul das asas. Esse não ronca. Assobia como jato. Com toda a agonia de um super-jato.

Depois que os dois, quase a correr, passam, chega a voz enérgica.Vinda de lá de trás: "Não atravessem a rua. Parem na esquina, desgraçados".

A gente pensa que chamar alguém de desgraçado é ofensa. Ou rudeza. Ou estupidez. Talvez seja mesmo. Mas não do jeito que a voz daquele pai fala aos seus guris. O nome, depreciativo, tem, naquela voz paciente, uma modulação carinhosa. Perde o sentido de injúria. É como se fosse uma palavra de amor.

Depois da voz aparece uma menina. A cabecinha cacheada de uma menina. Que se enfia, curiosa, por qualquer buraco de muro. Vira e revira os olhos vivos, sem medo algum, para ver o que há por trás da parede. Distrai-se com as flores. Sorri para uma empregada que varre. Fica curiosando janelas. Fundo de quintal. Um gato que dorme. Roupa estendida.

Então aparece o pai. Moço ainda. Um herói. Carrega mais dois filhos. Que, por impossibilidade absoluta, não se atrevem, como os outros, a grandes aventuras. Um vai no colo. Enfia a mão gorducha nos cabelos, na orelha, nos olhos do homem paciente que o carrega. A sorrir. E o segundo, mão e punho sumidos na mão grande que o amarra, reboca um caminhão. Que, como ele, só anda aos trambolhões. O que o pai lhe diz, sacudindo-o, erguendo-o sustentando-o, ele repete, como disco viciado, para o seu automóvel de carga:

"Vamos, diabo. Anda dileito. Vamos, diabo. Anda dileito. Vamos..."

O pai passa. Só olhos, mãos e sorriso carinhoso. Um herói. Um herói.

"Ô mulher xereta. Vai tirar esse nariz de batata daí?" A menina ri. Enquanto sai na corrida até a próxima casa, o pai manda o da patinete parar já e já. E o aviador embruxado também. Nem mais um passo, sem vergonhas.

Isso acontece aos sábados, domingos, dias santos e feriados. Nada altera o passeio atribulado do pai carinhoso. Só a chuva o suprime. Chuva grossa.

São tremendos os garotos. Ativos, irrequietos e encapetados. Fingem que vão sair para o meio da rua a cada cinco metros. E o pai se assusta. Ou finge que se assusta. E fala sem parar. Dizendo nomes que o desabafam. Sempre num tom carinhoso que diverte as crianças. Fazendo-as rir. Isso na ida e na volta. De forma invariável. Religiosamente.

Neste ultimo domingo, entretanto, o acúmulo de carros impediu que o pai atravessasse a segunda avenida. Uma das crianças deve tê-lo assustado de verdade. Voltou da esquina. Pálido de raiva. Estapeara os filhos. Xingava-os de verdade. Com dureza. Sem carinho. E vendo-os quietos, a chorar, todos ao seu lado, pôs-se a amaldiçoar a temporada.

Está demais! Tem mais jeito não.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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