GENTE E COISAS DA CIDADE Está bonito, João
Lydia Federici
"Estou na ala 'J', no andar de cima. Da janela só vejo o morro. Se fosse do outro lado, daria pra ver o mar. Como está o mar?"
***
João, João. Para satisfazê-lo seria suficiente lembrar o mar de um dia de sol. Como o do último domingo. Mas esse você pôde ver. E não foi isso que você perguntou. Sua pergunta foi feita no presente.
"Como está o mar?"
Fui ver o mar, João. O mar do dia cinzento de ontem.
Com céu cor da areia santista, o mar não fica azul. Nem verde. Adquire a opacidade cinza do céu. Mas não pense que o mar estava feio, João. Não tinha brilho. Nem revérberos, é verdade. Mas possuía profundidade.
Profundidade tranquila?
Não, João. Havia vento. Um vento frio que arroxeava crianças que chapinhavam, felizes, no raso. Vento encrespa o mar. Arrepia-o. A sua profundidade cor de chumbo não era tranquila, João. Sinto dizê-lo, mas não era não. Mas esse movimento, em toda
sua superfície, dava ideia de força. Sim. Ideia e força.
Força organizada?
Não, João. Havia correntes em todas as direções. E maré. Subindo constantemente nas suas negaças de ir e vir. E vento. Um vento que passava por cima. Aparentemente, sem nenhuma intenção. Inconstante em suas rajadas frias. Nesse movimento
desordenado de correntes marinhas, maré e vento, havia beleza. Uma beleza um tanto assustadora. Não se podia prever se a onda arrebentaria em espuma. Ou se continuaria a avançar. Desmanchando-se, depois, numa simples e inofensiva marola. Essa
movimentação de resultados imprevisíveis sugeria vida.
Vida bonita?
Bem, João. A vida é sempre bonita. Pode ser desgraçada. Miserável. Mas não deixa de ser vida. E vida é coisa bonita. É assim como o mar. Mais bonito num dia de sol. Mais bonito também num dia de céu cinzento. Gostaria de poder dizer-lhe que o mar,
na hora em que você perguntou, estava brilhante, cheio de luz, azul, tranquilo, calmamente murmurante. Mas não posso mentir, João. Em dias cinzentos, o mar não fica azul. Quando há vento, o mar não é liso nem tranquilo.
Mas que importância tem isso? Azul ou cor de chumbo, o mar é mar. Embaladora ou rugindo de ameaças, sua voz é sempre querida. Acariciando corpos ou chicoteando-os, seu contato é sempre estimulante. A
espuma das ondas, branca ou suja, fala-nos de vida. E vida é coisa boa. Bonita.
João, João. Está bonito o mar. Venha vê-lo. Não é sempre que o cinza cobre o céu. Nem sempre venta o vento. Amanhã, com sol, ele nos parecerá mais bonito. Mas ontem, ele também estava bonito, João.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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