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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 160)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 8 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Papagaio

Lydia Federici

Agosto ventoso é o mês dos papagaios. Mas se há vento em julho, pra que esperar agosto?

Troque pernas por aí, meu amigo. Ainda há um ou outro terreno com uma boa moita de bambu. Despreze o fino. Dê-se ao luxo de fazer coisa caprichada. Escolha o de gomos bem espaçados. Se achar do amarelo, não hesite. Roube um. Que bambu pedido ou dado tira a graça da brincadeira.

Abra-o com um canivete. De lâmina bem afiada. Deixe-o secar ao sol. Assim, as varas cortadas ficam cor de ouro. Bem leves. E já ligeiramente curvas. Tire-lhes o máximo da polpa branca. Deixe só a casca dourada. Com o mínimo de espessura. Sacudida a vareta, ela canta no ar? Então está no ponto. Vareta que não canta, não faz u bom papagaio.

Afinando a vareta, o bambu cortou-lhe o dedo? Ótimo. Papagaio perfeito tem que ter do nosso sangue. Quanto ao corte, esprema-o. Com um bom xingo, obrigue a pingar uma gota de sangue. Limpe o dedo nas calças. E beije o risco cor de rosa. Como mamãe fazia em outros tempos, para não doer. E sarar logo.

Amarre as varetas. Com linha fina. De carretel. A branca quase não aparece. Una as pontas das varetas douradas. A forma ficou bonita? Não estará muito abarricada? Capriche na forma, meu amigo. O papagaio tem que satisfazê-lo. Desamarre, corte, torne a amarrar. Até que ele fique como você o sonhou.

Já escolheu o papel de seda? Não. Não me diga a cor. Cada qual tem seu gosto. Também não diga a ninguém se vai ser em forma de estrela. Faça-o em segredo. Papagaio comentado, discutido, não serve.

Remexa a cesta de costura, mas só quando ninguém estiver olhando. Procure a tesoura grande. Se alguém reclamar a desordem, encolha-se, saia de fininho e não ligue. Papagaio só tem valor se aguentar reclamação alheia.

Espere, amigo. Não seja comodista. Largue essa goma arábica. Você esqueceu que a cola tem que ser feita com farinha? Vire a casa toda. Brigue com o padeiro. Mas descubra uma colher de farinha de trigo. E faça a papinha num pires. Cante enquanto despeja as gotas de água quente. Cante enquanto mistura o angu. E cante, num desafio orgulhoso, enquanto limpa os dedos nas calças ou na camisa.

Corte o papel. Faça o desenho que quiser. Cole-o na armação. Ponha exatamente a quantidade necessária de cola branca. Veja que as dobras fiquem estreitas. E bem iguais. Faça um trabalho limpo. Que enalteça o artista.

Enquanto a cola seca, vá procurar trapos. Para o rabo do papagaio. Remexa gavetas. Investigue o quintal. Pule muros. Minta. Invente o que quiser. Mas consiga um pedacinho de fazenda do vestido dela. Papagaio tem que levar amor.

Acerte os tirantes. Pendure o rabo colorido. Experimente. E depois vá à praia. Leve uma criança para disfarçar. Empine-o. Se seus olhos não se encherem de lágrimas, não pense que o céu mudou. Que o vento não é o mesmo. Que o papagaio é diferente. Nada disso mudou. Você é que morreu.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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