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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 158)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 6 de julho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Akemi

Lydia Federici

Entrou, num rodopio vacilante, na pequena farmácia cor de rosa. No primeiro instante, o que se percebeu foi uma trouxinha bem estufada de roupa. Correu, em ziguezague, de pernas a pernas. Pernas que alcançava pelos joelhos. Que abraçava com ternura exuberante. E que, depois, largava, batendo palmas. Dona Ada pegou a garotinha e suspendeu-a.

E, então, a carinha morena apareceu. Redonda. Mostrando um sorriso aberto, feliz, cheio de dentes pequenos e brilhantes. Foi nos olhos escuros e luminosos, entretanto, que todos, maravilhados, se perderam. A olhar. Eram olhos incomuns, sem dúvida alguma. Quase redondos, ligeiramente repuxados. Mas não era a forma que atraía. E sim a expressão. Carregada de um brilho maroto, feliz, confiante, sem reservas. A derrubar ternura curiosa. A provocar, inocentes e puros, nosso bem querer.

"Quem é?"

"Filha dessa senhora que está telefonando". Era uma moça pálida, quieta. Brasileira. Sem nada de especial nos traços. Os olhos seriam do pai?

"Mostre como são os olhos do papai". Dona Ada ajeitou-a no colo, firmando o embrulho de roupa grossa, aflanelada.

A garotinha ampliou o sorriso. Levantou os braços. Com os dedos pequeninos tapou os olhos. Correu as mãos para os lados do rosto. Seus dois olhos, repuxados, viraram um traço oblíquo. Através da fresta diminuta continuava a jorrar brilho. E luz. E calor maroto.

"Agora mostre como são os olhos da mamãe". A menina sacudiu a cabeça, fazendo sobressair a cuia engraçada dos cabelos quase pretos. Com as mãos em forma de binóculo procurou arredondar o amendoado de seus olhos. Através dos dedos, sempre o mesmo brilho continuava a jorrar.

"E os olhinhos da Akemi como são?"

A menina fez um beicinho desconsolado. Abriu os braços, sacudiu lateralmente as mãos. Pela primeira vez falou. Para explicar o que queria dizer aquele balançar de mãos: "Axim... axim..."

"Você não quer recitar? A batatinha?" Ora. A garota queria qualquer coisa. Só ficar quieta é que não. Dona Ada pousou-a no chão. Akemi equilibrou-se sobre as pernas grossas de roupa. Pensou um pouco. E, numa disparada, atacou a "batatinha". Com gestos. Só gestos. Gestos de bailarina apressada. Das palavras só sobrava o final de cada verso. Bem puxado. Comprido. "...nache. chão... dome... achão".

Quando terminou, com as duas mãozinhas sobre o coração, toda a alegria do mundo brilhava-lhe no rosto redondo, cor de mate. Riu uma risada do tamanho de sua alegria e, sem esperar pelas palmas de ninguém, ela própria, com entusiasmo, aplaudiu a sua apresentação. E saiu, em ziguezagues, trouxinha embrulhada, a correr pela farmácia. A abraçar, com carinho, as pernas de todos.

Akemi. Akemi. Criança, pequena criança do Brasil. Tenho vergonha. E tenho medo. Que terra, que gente, que fé, que trabalho, que exemplos legaremos a você?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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