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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 151)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 27 de junho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Pedrinhas brancas

Lydia Federici

O caminhão buzinou, dobrou a esquina bem devagar. Em marcha reduzida, com o motor roncando grosso, avançou até o meio da quadra. Parou diante de um bangalô, cuja calçada mostrava sinais de tijolos e de areia mal varrida.

As primeiras pedras, em blocos irregulares, foram descarregadas uma a uma. Chofer e ajudante, os músculos retesados, foram-nas colocando sobre a beira do passeio. Feita a cama, perderam a delicadeza e empurraram as outras de cima do caminhão. O mármore batia contra o mármore. A cada batida, lascas saltam. Pequenas e grandes. Imobilizam-se, brilhantes, imaculadamente brancas, sobre o cinza escuro e sujo da calçada.

E lá ficou a montanha branca.

A rua é rua de crianças. Tem meninos de todos os tamanhos. Tem meninas pequenas e quase mocinhas. A montanha de pedras brancas atraiu a criançada. A bola foi largada dentro de um carrinho vazio de bebê. Os meninos foram os primeiros a chegar. Nunca tinham visto pedra tão bonita. Entreolharam-se. Observaram, disfarçadamente, o bangalô silencioso. Um abaixou-se, escolheu uma primeira lasca. Pequenina. Em dez minutos, a calçada ficou quase limpa de pedrinhas jeitosas. Os meninos catando. As meninas olhando. "Pra que serve isso?", pergunta uma delas. Um sardentinho, com a rancheira a escorregar-lhe da cintura, pôs dois dedos em "V", chegou-lhe a outra mão fechada, esticou uma borracha imaginária.

"Ziimmm..." A menina olhou-o com cara de boba.

"Estilingue, sua pateta". Bateu nos bolsos deformados. "Munição especial". E saiu na corrida, segurando as calças pesadas e chocalhantes, puxando a debandada geral. De longe, as meninas, em grupo, ficaram a confabular. Que podiam elas fazer com aquelas pedrinhas brancas? Nenhuma descobriu. Só deviam servir, mesmo, para os estilingues dos garotos.

À noitinha, uma moça dobrou a esquina. Caminhava com pressa, a cabeça cor de cinza tombada para a frente. A mancha branca no passeio fê-la estacar. Apertou, num susto, o casaquinho verde contra o coração. Percebendo as pedras, suspirou. Brancas assim, nunca vira. No escurecer, sua brancura brilhante parecia irreal.

Olhou para a rua deserta. Abaixou-se com os joelhos muito unidos, suspendendo um pouco a saia que lhe impedia a flexão. Dedos morenos, ágeis e nervosos, procuraram algumas pedrinhas. Selecionou cinco. Recontou-as na palma da mão. Sorrindo, atirou-as, com leveza, para o alto. Conseguiu equilibrar uma nas costas da mão. As outras espalharam-se pelo chão. Passos ressoam lá no princípio da rua. Com a pedrinha branca apertada na palma da mão, a moça levanta-se de golpe, alisando a saia. E põe-se a caminhar, a cabeça orgulhosamente erguida. Um sorriso perdido entre os lábios.

Moça. Moça. Volte. Não fuja, moça que teve infância. Volte para ensinar ás meninas de sua rua o que elas podem fazer com cinco pedrinhas. Brancas ou não.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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