GENTE E COISAS DA CIDADE Uma janela
Lydia Federici
Tudo vai de criação. Quando a gente aprende que não se deve pôr os olhos em janela alheia, nãohá nada a fazer. Olhar
sempre nos deixa, lá por dentro, um certo sentimento de culpa.
É evidente que nem todos receberam a mesma lição. É por isso que muita gente sempre arruma assunto fresco. Sabe-se do bom gosto do vizinho recém-chegado pelo tamanho e colorido das toalhas que enfeitam o peitoril de uma janela ensolarada. Sabe-se
que a menina tem namorado novo, pelo longo tempo que fica a corrigir um ligeiro desvio de cinco pelos da sobrancelha cerrada. Sabe-se que a empregada daquele apartamento é louca pra remexer gaveta. E cheirar perfume. E descobrem os olhos
embinoculados que ela é louca, principalmente, para tentar, com a beleza que Deus lhe deu, todos os rapazes da vizinhança.
Janela, de casa ou de apartamento, não serve exatamente para o fim de clarear e arejar. É coisa muito mais importante. É canal de comunicação. É palco de atitudes. E vitrina. Vitrina onde se expõem artigos não vendáveis. Ou artigos solicitáveis. E
sentimentalmente, pelo menos, comerciáveis. Muita coisa começa e acaba em janela.
Para os que aprenderam que janela alheia é retângulo não olhável e para os que acham que janela pode ser vasculhada à vontade, atrevo-me a dar o mesmo conselho. Há, numa janela de casa santista, uma coisa que, não sendo olhada, merece castigo. E
vale para todos. Bem educados ou atrevidos.
Que é?
Nem sei como explicar. Só sei que é beleza pura. Poesia.
Seja lá, meu amigo, você o que for. Goste do que gostar. Se quiser ver algo capaz de, com uma simples contemplação de minuto, melhorar esta vida tão cheia de luta, problemas e incertezas, acompanhe este itinerário.
Sabe onde é a rua Bittencourt? Sim. Lá na cidade. Perto da praça José Bonifácio. Vindo pela Senador Feijó ou pela Braz Cubas, é entre estas duas ruas que fia a janela. Do lado da praia, quase esquina da Feijó.
É uma janela de casa velha. Não um vitrô. Uma simples janela, mais alta que larga. Batendo os olhos nela, a gente logo vê que é ali. Sobre o peitoril, bem no centro, há um vaso. E é só.
E, por causa de um vaso, mando-o trocar de pernas? Estender o pescoço para cima? Exatamente. Com uma correção ligeira, porém. Não o mando, meu amigo. Sugiro-lhe, apenas.
Descubra a janela. Veja o vaso. Se aquele guarda-chuva verde, recoberto de flores cor de rosa, nada lhe disser à alma, ou não lhe puser lágrimas nos olhos, ou não fizer que suas mãos, inconscientemente, se unam em oração, permita-me dizer-lhe que o
que você vê de graça, ingleses gastam milhões para cultivar, pobremente, em suas estufas: a flor de maio.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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