GENTE E COISAS DA CIDADE Podia ser pior
Lydia Federici
Uma estatística afirma que a greve do pessoal do gás afetou a vida de trinta mil casas. Ou, bem entendido, a vida dos
moradores de trinta mil casas. Porque a velha City, em número redondo, tem trinta mil ligações estabelecidas.
Sei de muitas casas que têm fogão alimentado a gás de rua e a gás engarrafado. Para essas donas de casa, a greve não teve, praticamente, importância. Apenas, talvez, o número de famintos,, ao redor da mesa, tenha aumentado. Mas isso é problema de
mesa. Não de cozinha.
E as outras todas? Como se arranjaram as cozinheiras cujo fogão só funciona com o gás que vem da rua?
No primeiro dia, aceitou-se a coisa com bom humor. Ninguém vai estourar porque, no almoço, só saiu um bife. Até que foi divertido ouvir todo mundo perguntar a todo mundo que almoço havia engolido.
No segundo dia, a história perdeu a graça. Ter que raspar a pretura das panelas é coisa a que esmalte de unhas não resiste. Seja ele qual for. E um prato só, uma panelada de qualquer coisa, não satisfaz a ninguém. Brasileiro sempre gostou de cinco
pratos, no mínimo. Que miséria é essa? A mesa vazia e o estômago atulhado de "risoto" acabaram com o bom-humor de todos. E veio a raiva. E chegou o desespero. Geral. Mas principalmente entre a grande colônia das donas de casa.
O máximo que ouvi, em matéria de desatino culinário, foi esta história. Verídica, sim senhora.
Quando estourou a greve, ela lembrou-se de um fogareiro elétrico escamoteado num armário qualquer. Procurou-o. Ligou-o. E o almoço saiu. Arroz queimado. Boca elétrica não tem meio termo. Quando acende, dá o máximo. Mas uns bolinhos fritos salvaram
a situação. Como a família, trabalhando fora, tivesse hora para o almoço, a dona de casa lembrou-se de ver uma espiriteira. Com dois fogos, daria para continuar cozinhando coisa satisfatória.
Comprou a espiriteira no segundo dia. E, nesse segundo dia, por mais que trocasse as pernas pelo bairro, não encontrou álcool à venda. Estoque esgotado. A espiriteira ficou, nova e brilhante, sobre a pia. O fogãozinho elétrico deu, coitado, o que
tinha para dar. No terceiro dia, cansado, pifou. Logo de manhã. Nem água pra o café esquentou. A resistência levara a breca. Até encontrar alguém que a substituísse, o almoço foi sanduíche de queijo. E olhe lá.
Uma filha, desatinada, correu à cidade. Comprou um "Jacaré". De duas bocas, só pra não ver a mãe tão nervosa. Mas esse fogareiro funciona a querosene. E onde está o querosene: Pode ser que haja em algum canto. Mas ela não o conseguiu descobrir.
"Não é muita desgraça junta? Já nem sei o que fazer. Pior não podia ser".
Calma. Muita calma. Podia ser pior, sim. Seria pior se não tivéssemos o que pôr na panela. Ou no estômago. É ou não é?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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