GENTE E COISAS DA CIDADE Sem gás
Lydia Federici
Mal o despertador principiou a tocar, a mãozinha esperta travou-o com gesto seguro. O outro braço saiu de dentro do
cobertor. Com os olhos muito abertos, ela procurou a claridade da janela. Pois sim. Toda a parede era a mesma escuridão.
Espreguiçou-se com jeito. Sentada na beira da cama, vestiu o penhoar. Estremeceu sentindo o frio da fazenda. Por que não fazem fazendas quentes para o frio? Lã é quente. Lógico que é. Depois que esquenta com o calor do corpo, ora.
Depois de prender os cabelos rebeldes foi para a cozinha. Encheu a panelinha com água. deu dois passos à esquerda e chegou ao fogão. Abriu o registro geral, a chave do gás. Riscou um fósforo e chegou-o ao bico. Plef! O estouro fê-la pular, o
coração num disparo. "É ar no cano". Assim ouvira sua mãe explicar aquilo. Como é que ela fazia? Desligava a chave, esperava um momento. Tornava a abri-la. Esperava o chiado do gás. Mas onde estava o chiado? Abriu toda a chave. Riscou outro
fósforo, o corpo afastado do fogão, esbarrando na geladeira. Plef! Outro estouro. E outro susto.
Desorientada, com as pernas moles, sentou-se na beira de uma cadeira, apalpando a cintura grossa. "Calma. Não foi nada. Só um estourinho à toa".
Pensou no marido. Será que não acordara com aqueles estrondos? Sorriu. Para acordar Francisco, só as suas sacudidas. E o cheiro gostoso do café para acalmar-lhe o mau humor ao despertar. Como ia ser? Sem café? Pensou no que sua mãe faria numa
ocasião dessas. Ora. Gritaria para a vizinha. Perguntando se o seu gás também estava falhando. Riu. Ela não poderia fazer a pergunta assim, a vizinhos ainda pouco conhecidos. E nunca a essa hora da manhã. Mas quem sabe se algum acordara com os
estouros?
Fechou bem o penhoar, abriu a porta de entrada, acendeu a luz do corredor. Colou o ouvido à porta do apartamento vizinho. Nenhum movimento. Subiu a escada, soerguendo a barra do longo penhoar. No andar de cima, o mesmo silêncio. No terceiro,
também. Como informar-se? Como saber se era defeito do seu fogão? Deus. Será que o rapaz do escritório esquecera de pagar a conta? Será que a City, por essa razão, cortara o gás?
Voltou para o seu apartamento tremendo de frio. Como aprontar o café para Francisco? Coçou a sobrancelha pensando na mãe. De que jeito ela resolveria esse problema? Com espiriteira? Mas onde a espiriteira?
Foi para o quarto. "Francisquinho. Acorde". Sacudiu-o. "Escute, meu bem. Abra os olhos. Estamos sem gás". Choramingava. "Você pagou a conta do gás? Não fiz café, não. Então não estou dizendo que estamos sem gás?"
Ficaram os dois a olhar-se. Sem café? Como é que iam ficar sem café? Que houvera com o gás?
E se a casa de mamãe - abençoada mamãe que tudo resolvia - não ficasse ali perto, como é que ele ia trabalhar, preocupado em deixá-la sem café? E como é que ela ia passar a manhã, mandando-o trabalhar em jejum?

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|