GENTE E COISAS DA CIDADE Carro abandonado
Lydia Federici
Foi neste último domingo, pela manhã, que a história começou a acontecer. O carro vinha vindo muito bem. De repente,
deu um espirro. Pudera. Com a umidade que anda por aí. Deu um espirro e o motor deu de ratear. Parou de vez. O chofer encostou a ferrugem ambulante ao meio fio. Desceu, com ar amolado. Ninguém na rua. Abriu o capô. Enfiou a cabeça no motor. Foi
nessa posição que o dono da casa da frente foi encontrá-lo.
"Presa de alguma coisa?". Ofereceu-se com cortesia. Quem disse que cortesia provoca cortesia? O que recebeu do chofer mal-humorado foi um "não" bem duro e seco. Nem a cabeça se deu ao trabalho de levantar. O dono da casa, meio ofendido, ia dar meia
volta quando teve outra ideia. Se ele ficasse ali, olhando, sabia que o ouro ia ficar bem mais chateado do que já estava. Foi o que fez. Plantou-se na calçada. O outro puxou fio. Sacudiu as velas. Bateu no carburador.
"Vou buscar socorro. Quer dar uma olhada no carro?" E, sem mostrar a cara, rodou no pé e pôs-se a andar. O dono da casa abriu a boca. E tornou a fechá-la. Olhou o carro. As portas sem trava nem chave. Rádio. Ferramentas. Relógio. Tudo se oferecendo
a qualquer mão gulosa.
"E eu vou ficar tomando conta disto aqui? A troco de que? Bolas. O dono que cuide do que é seu". Entrou. Entrou mas não sossegou. O carro, lá fora, de porta aberta, preocupou-o até a hora do almoço. E se levassem alguma coisa? De tanto em tanto,
chegava até a frente, dava uma espiada na rua. O caro, firme, sempre no mesmo lugar. Do dono, nenhum sinal. Entrou. Almoçou. Uma porta bateu forte. Saiu na corrida. Seria o dono? Ou o mecânico? Ninguém. Ninguém, tampouco, mexeu no carro. De que
jeito se sempre, da casa, havia olhos a chocar o automóvel abandonado?
À noite, a família resolveu acabar com aquela preocupação. Telefonaram à Delegacia de Trânsito. Havia queixa de algum carro roubado? Chapa número tanto? Fora largado diante do portão desde a manhã. Aberto. Todo equipado. Não. Incomodando,
propriamente, não estava. Mas dava uma preocupação dos diabos. Mandariam o guincho? Obrigado.
O guincho não veio. Ninguém, na casa, dormiu sossegado. Todos julgavam ouvir ladrões a roubar o rádio. Na segunda-feira, o Morris continuava na rua. Todo orvalhado. Mas intacto. Por dentro e por fora. Uff. Que alívio saber que não há aproveitadores
ou malandros na zona. Uma amiga quis saber o que havia com aquele carro parado. Outra telefonou. "É carro roubado? Avisaram a polícia?"
Telefonaram novamente para o Trânsito. Explicaram o negócio. Às 14 horas, finalmente, veio o guincho. Aí. Que bom ver o problema resolvido. Pois sim. O guincho empacou. Telefonaram para o Trânsito. Veio o "rabecão". Que não é mais "rabecão". Virou
carro-socorro. O guincho desempacou. E, por fim, viram o caro sair. Para andar 23 metros e cair logo adiante. Mas aí o problema já era de outro vizinho. "Sai, azar".

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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