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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 132)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 3 de junho de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Velho soldador

Lydia Federici

É uma senhora que mora num apartamento da Pedro de Toledo. Saiu de sua casa e encarapitou-se nas alturas. Se se acostumou na moradia nova é coisa que não interessa. É de supor-se que sim. Reduziu a mobília. Resumiu os trastes. Que apartamento, por maior e melhor que seja, sempre nos arranca pedaços da alma. Mas uma coisa ela conservou. A lata de lixo. Grande. Nova.

Aconteceu, porém, que a lata, de nova, acabou ficando usada. O fundo enferrujou. Furou. Ora. Não tem cabimento pôr, no lixo, uma lata de lixo. Só porque lhe falta o fundo. Mormente custando o que custam elas. E, de mais a mais, sendo, como era, lembrança de sua velha casa.

Vai daí, a dona do apartamento foi a uma funilaria.

"Não fazemos esse serviço, dona. É biscate que não rende. Desculpe".

Ela foi a outra. O patrão olhou a lata. Olhou os funileiros ocupados. Mandou-a a um compadre. Lá adiante. O compadre fez uma careta. Coçou a cabeça. Engrolou uma desculpa qualquer. Na quarta funilaria, deram-lhe o melhor conselho. Mais barato lhe ficaria comprar uma lata de lixo nova. Nenhum funileiro perderia tempo num remendo daqueles. Inúti ficar passeando com aquele trambolho.

Trambolho? Era a sua lata de lixo. Da casa grande. Gente sem alma. E a senhora, profundamente ofendida, voltou, agarrada à lata, para o apartamento. Lembrou-se, de repente, do "dim-dim-dim". O velho soldador italiano de sua antiga rua. Mas, por onde andaria ele? Havia anos que não o via.

Nos dias seguintes, viveu apurando o ouvido. E, ilusão ou não, acabou por ouvir o "dim-dim" tão esperado. Despencou das alturas. Lá estava ele. Dobrado, pelo meio, ao peso de sua tralha. Chamou-o. Alvoroçada. Mostrou-lhe a lata. "Valeria a pena?"

O soldador bateu na folha. "Boa lata. Com fundo novo, fica nova". Levou-a para o pátio, onde ele trabalharia mais abrigado. Viu-o pousar o fogareiro no chão, dobrando os joelhos. Descarregar a caixa que lhe pesava nas costas curvas. Viu-o sentar-se, devagar, no banquinho. E, sem pressa, começar o trabalho. Cantarolava e falava sozinho, Só, no mundo. Com suas velhas ferramentas e o trabalho que tinha a fazer. Viu-o escolher uma folha. Fê-la cantar. Escolher outro pedaço. Deixou-o só. Doía-lhe o coração ver o velho de calças ensebadas procurar uma ferramenta que tinha entre as mãos. Meia hora depois, desceu. O soldador olhava o fundo com orgulho. "Pronto, dona. Tem lata 'per' muito tempo ainda".

Ela também sorriu. Feliz. Bobamente feliz. "Quanto é?"

O soldador olhou a lata. "Cinquenta cruzeiros vai 'bé'? Ela lhe deu outra nota muito maior. Sem troco. "Mas nó. Cinquenta chega". Foi um custo fazê-lo aceitar.

Ah, dim-dim-dim, velho funileiro. Passe por todas as ruas de Santos. Pra mostrar como se trabalha com prazer e orgulho. Pra gente ver que ainda há um homem que se contenta em ganhar pouco.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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