GENTE E COISAS DA CIDADE Velho soldador
Lydia Federici
É uma senhora que mora num apartamento da Pedro de Toledo. Saiu de sua casa e encarapitou-se nas alturas. Se se
acostumou na moradia nova é coisa que não interessa. É de supor-se que sim. Reduziu a mobília. Resumiu os trastes. Que apartamento, por maior e melhor que seja, sempre nos arranca pedaços da alma. Mas uma coisa ela conservou. A lata de lixo.
Grande. Nova.
Aconteceu, porém, que a lata, de nova, acabou ficando usada. O fundo enferrujou. Furou. Ora. Não tem cabimento pôr, no lixo, uma lata de lixo. Só porque lhe falta o fundo. Mormente custando o que custam elas. E, de mais a mais, sendo, como era,
lembrança de sua velha casa.
Vai daí, a dona do apartamento foi a uma funilaria.
"Não fazemos esse serviço, dona. É biscate que não rende. Desculpe".
Ela foi a outra. O patrão olhou a lata. Olhou os funileiros ocupados. Mandou-a a um compadre. Lá adiante. O compadre fez uma careta. Coçou a cabeça. Engrolou uma desculpa qualquer. Na quarta funilaria, deram-lhe o melhor conselho. Mais barato lhe
ficaria comprar uma lata de lixo nova. Nenhum funileiro perderia tempo num remendo daqueles. Inúti ficar passeando com aquele trambolho.
Trambolho? Era a sua lata de lixo. Da casa grande. Gente sem alma. E a senhora, profundamente ofendida, voltou, agarrada à lata, para o apartamento. Lembrou-se, de repente, do "dim-dim-dim". O velho soldador italiano de sua antiga rua. Mas, por
onde andaria ele? Havia anos que não o via.
Nos dias seguintes, viveu apurando o ouvido. E, ilusão ou não, acabou por ouvir o "dim-dim" tão esperado. Despencou das alturas. Lá estava ele. Dobrado, pelo meio, ao peso de sua tralha. Chamou-o. Alvoroçada. Mostrou-lhe a lata. "Valeria a pena?"
O soldador bateu na folha. "Boa lata. Com fundo novo, fica nova". Levou-a para o pátio, onde ele trabalharia mais abrigado. Viu-o pousar o fogareiro no chão, dobrando os joelhos. Descarregar a caixa que lhe pesava nas costas curvas. Viu-o
sentar-se, devagar, no banquinho. E, sem pressa, começar o trabalho. Cantarolava e falava sozinho, Só, no mundo. Com suas velhas ferramentas e o trabalho que tinha a fazer. Viu-o escolher uma folha. Fê-la cantar. Escolher outro pedaço. Deixou-o só.
Doía-lhe o coração ver o velho de calças ensebadas procurar uma ferramenta que tinha entre as mãos. Meia hora depois, desceu. O soldador olhava o fundo com orgulho. "Pronto, dona. Tem lata 'per' muito tempo ainda".
Ela também sorriu. Feliz. Bobamente feliz. "Quanto é?"
O soldador olhou a lata. "Cinquenta cruzeiros vai 'bé'? Ela lhe deu outra nota muito maior. Sem troco. "Mas nó. Cinquenta chega". Foi um custo fazê-lo aceitar.
Ah, dim-dim-dim, velho funileiro. Passe por todas as ruas de Santos. Pra mostrar como se trabalha com prazer e orgulho. Pra gente ver que ainda há um homem que se contenta em ganhar pouco.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|