GENTE E COISAS DA CIDADE Missões
Lydia Federici
Dias antes dos missionários chegarem à paróquia, os congregados marianos foram convocados.
Foram. Que quem faz as coisas por amor não reclama. E não falta.
O vigário explicou-lhes o que tinham a fazer. DIsse-lhes da importância da propaganda. Uma palavra, desapercebida por mil olhos, salva, às vezes, uma alma. Muitas faixas tinham sido feitas. Convidando a todos para assistirem à palavra de Deus. E
essas fixas tinham que ser colocadas em locais estratégicos. De onde pudessem ser vistas pelo maior número possível de pessoas. Essa a tarefa destinada ao congregado.
Antonio, um dos rapazes presentes, a princípio sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Sua mente reviu essas tiras de pano esticadas entre dois postes vizinhos. Entre um poste e o tronco alto de uma árvore. Faixa é coisa que tem que ficar no
alto. E aí é que estava o problema. Ele nascera no chão. Sempre gostara de sentir os pés bem agarrados à terra.
De moleque, nunca trepara em árvore. Derrubava as frutas com uma vara. Ou catava-as do chão. Mais crescido, rapaz já, essa ojeriza pelas alturas continuava. Nunca era ele que subia numa cadeira para trocar a lâmpada queimada. Tampouco se agarrava
aos degraus da escada para prender uma cortina. Preferia ficar aqui em baixo. Os pés sentindo a firmeza do chão. Das coias altas, elevadas, só a sua alma é que gostava.
Lembrou-se disso tudo e, por um momento, ficou pensando. Ajudar, ajudaria. É claro que não abandonaria seus companheiros. Carregaria a faixa. As cordas. Até a escada. E cooperaria aqui de baixo. Em tudo. Por tudo. Mas só no chão. Respirou aliviado.
E parou de enxugar o suor que lhe molhava a testa.
Na noite do trabalho, juntou-se ao seu grupo. E com ele partiu, prestando-se a carregar tudo que tinha que ser carregado. Sabem como é. Começando a trabalhar com vigor, os outros, com certeza, depois, saberiam poupar-lhe as forças.
Foi o que aconteceu. Os outros subiram. Antonio ficou firmando a escada. Nem olhava para o alto. Isso o deixaria tonto. Estava quase pronta a colocação da primeira faixa, quando o negócio enguiçou. O vento repuxava o pano, não havia mãos que
conseguissem amarrar as pontas da corta. Antonio, de cá de baixo, deu palpites. Deu ideias. Deu conselhos. Nada. Só mais duas mãos poderiam resolver o problema. E Antonio subiu. Suando, tremendo, rezando, mas subiu. Todo seu corpo era uma cola a
grudar-se na escada. No poste. Quanto lhe custou a aventura, só Deus soube. Deus e ele próprio.
Ao chegar em casa, terminado o trabalho, depois das duas da madrugada, Antonio estava quase morto de cansaço e emoção. Nada lhe acontecera. As faixas estavam dependuradas. Se uma palavra salva uma alma, o sacrifício do pobre operário deve ter
salvo, no mínimo, umas dez.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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