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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 130)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 31 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Missões

Lydia Federici

Dias antes dos missionários chegarem à paróquia, os congregados marianos foram convocados.

Foram. Que quem faz as coisas por amor não reclama. E não falta.

O vigário explicou-lhes o que tinham a fazer. DIsse-lhes da importância da propaganda. Uma palavra, desapercebida por mil olhos, salva, às vezes, uma alma. Muitas faixas tinham sido feitas. Convidando a todos para assistirem à palavra de Deus. E essas fixas tinham que ser colocadas em locais estratégicos. De onde pudessem ser vistas pelo maior número possível de pessoas. Essa a tarefa destinada ao congregado.

Antonio, um dos rapazes presentes, a princípio sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Sua mente reviu essas tiras de pano esticadas entre dois postes vizinhos. Entre um poste e o tronco alto de uma árvore. Faixa é coisa que tem que ficar no alto. E aí é que estava o problema. Ele nascera no chão. Sempre gostara de sentir os pés bem agarrados à terra.

De moleque, nunca trepara em árvore. Derrubava as frutas com uma vara. Ou catava-as do chão. Mais crescido, rapaz já, essa ojeriza pelas alturas continuava. Nunca era ele que subia numa cadeira para trocar a lâmpada queimada. Tampouco se agarrava aos degraus da escada para prender uma cortina. Preferia ficar aqui em baixo. Os pés sentindo a firmeza do chão. Das coias altas, elevadas, só a sua alma é que gostava.

Lembrou-se disso tudo e, por um momento, ficou pensando. Ajudar, ajudaria. É claro que não abandonaria seus companheiros. Carregaria a faixa. As cordas. Até a escada. E cooperaria aqui de baixo. Em tudo. Por tudo. Mas só no chão. Respirou aliviado. E parou de enxugar o suor que lhe molhava a testa.

Na noite do trabalho, juntou-se ao seu grupo. E com ele partiu, prestando-se a carregar tudo que tinha que ser carregado. Sabem como é. Começando a trabalhar com vigor, os outros, com certeza, depois, saberiam poupar-lhe as forças.

Foi o que aconteceu. Os outros subiram. Antonio ficou firmando a escada. Nem olhava para o alto. Isso o deixaria tonto. Estava quase pronta a colocação da primeira faixa, quando o negócio enguiçou. O vento repuxava o pano, não havia mãos que conseguissem amarrar as pontas da corta. Antonio, de cá de baixo, deu palpites. Deu ideias. Deu conselhos. Nada. Só mais duas mãos poderiam resolver o problema. E Antonio subiu. Suando, tremendo, rezando, mas subiu. Todo seu corpo era uma cola a grudar-se na escada. No poste. Quanto lhe custou a aventura, só Deus soube. Deus e ele próprio.

Ao chegar em casa, terminado o trabalho, depois das duas da madrugada, Antonio estava quase morto de cansaço e emoção. Nada lhe acontecera. As faixas estavam dependuradas. Se uma palavra salva uma alma, o sacrifício do pobre operário deve ter salvo, no mínimo, umas dez.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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