GENTE E COISAS DA CIDADE Força, time
Lydia Federici
Em 58, o médico, depois de examinar a paciente de quase oitenta anos, falou à família reunida:
"Poupem-lhe emoções". E saiu, cabisbaixo. Deixando um mundo de preocupações.
Foi na época em que, na Suécia, se realizavam os jogos do campeonato mundial de futebol. No meio de toda a preocupação instalada na casa, um ponto pacífico havia: a doente não gostava de futebol. Não sabia o que era gol. Nunca prestara atenção a
algo que, de longe ou de perto, se relacionasse com o futebol.
Para não perturbar a casa com o histerismo do rádio, a família, entretanto, de sobreaviso, desligou todos os aparelhos sonoros. E procurou disfarçar agonia, dúvidas e alegria. O transistor era ouvido no fundo do galinheiro. Quase em silêncio.
Dentro da casa, nenhum comentário futebolístico. Visitas eram avisadas. "Futebol é tabu".
Mas havia o foguetório que explodia no ar de toda a cidade. "Alguém está comemorando a sorte grande". Era assim que explicavam as bombas. E tudo ia correndo bem. Numa camuflagem perfeita. Sem emoções reveladas.
No dia do jogo final, com dona Sinhá no quarto, repousando, muita calma, a família toda não se aguentou. O rádio foi ligado na garagem, com pouco volume. Pequenos e grandes rodearam-no. E foi aquele retorcer de mãos. O roer de unhas. As palmadas na
testa. O olhar para o relógio. O estouro de alegria, expandindo-se em beijos e abraços silenciosos.
Acalmados, entraram todos, então. Foram ver se dona Sinhá havia acordado. Para o almoço. Encontraram-na no terraço da frente. Dando vivas ao Brasil. Chorando de alegria. Cumprimentando os que passavam a gritar.
E nada aconteceu. Dona Sinhá, doente de tristeza, precisava mesmo é de uma boa dose de alegria.
Estamos em 62. À beira da saída para outro mundial de futebol.
Mal comparando, nunca esteve tão mal de vida o pobre do brasileiro. De vida e de alma. Há desgoverno. Há fome e descontentamento. Há inquietação, insatisfação. E há, sobretudo, uma grande desesperança em todos os corações. Todo mundo anda de olho
arregalado. Quem quiser saber o que é alma penada, é só olhar para qualquer brasileiro. Não há cantos, por mais que a gente se vire e desvire, de onde possa vir um pouco de luz. Está tudo escuro. E feio. E triste. E, cada vez mais escuro. E mais
feio. E muito mais triste.
Se vinte e dois homens de camisa cor de ouro quiserem, souberem e puderem conquistar o título máximo, o brasileiro doente, de bolso vazio, de estômago vazio, e todo vazio de esperança, ainda terá força para alegrar-se. Para acreditar. Para
sobreviver. Para salvar-se. Caso contrário, quem nos acudirá? Que fé nos restará?
Aí, Pelé de todos nós. Aí, seleção de nossos amores. Força, time.
E que Deus, pelo menos no futebol, se lembre de ser brasileiro.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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