Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d129.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:16:54
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 129)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 30 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Força, time

Lydia Federici

Em 58, o médico, depois de examinar a paciente de quase oitenta anos, falou à família reunida:

"Poupem-lhe emoções". E saiu, cabisbaixo. Deixando um mundo de preocupações.

Foi na época em que, na Suécia, se realizavam os jogos do campeonato mundial de futebol. No meio de toda a preocupação instalada na casa, um ponto pacífico havia: a doente não gostava de futebol. Não sabia o que era gol. Nunca prestara atenção a algo que, de longe ou de perto, se relacionasse com o futebol.

Para não perturbar a casa com o histerismo do rádio, a família, entretanto, de sobreaviso, desligou todos os aparelhos sonoros. E procurou disfarçar agonia, dúvidas e alegria. O transistor era ouvido no fundo do galinheiro. Quase em silêncio. Dentro da casa, nenhum comentário futebolístico. Visitas eram avisadas. "Futebol é tabu".

Mas havia o foguetório que explodia no ar de toda a cidade. "Alguém está comemorando a sorte grande". Era assim que explicavam as bombas. E tudo ia correndo bem. Numa camuflagem perfeita. Sem emoções reveladas.

No dia do jogo final, com dona Sinhá no quarto, repousando, muita calma, a família toda não se aguentou. O rádio foi ligado na garagem, com pouco volume. Pequenos e grandes rodearam-no. E foi aquele retorcer de mãos. O roer de unhas. As palmadas na testa. O olhar para o relógio. O estouro de alegria, expandindo-se em beijos e abraços silenciosos.

Acalmados, entraram todos, então. Foram ver se dona Sinhá havia acordado. Para o almoço. Encontraram-na no terraço da frente. Dando vivas ao Brasil. Chorando de alegria. Cumprimentando os que passavam a gritar.

E nada aconteceu. Dona Sinhá, doente de tristeza, precisava mesmo é de uma boa dose de alegria.

Estamos em 62. À beira da saída para outro mundial de futebol.

Mal comparando, nunca esteve tão mal de vida o pobre do brasileiro. De vida e de alma. Há desgoverno. Há fome e descontentamento. Há inquietação, insatisfação. E há, sobretudo, uma grande desesperança em todos os corações. Todo mundo anda de olho arregalado. Quem quiser saber o que é alma penada, é só olhar para qualquer brasileiro. Não há cantos, por mais que a gente se vire e desvire, de onde possa vir um pouco de luz. Está tudo escuro. E feio. E triste. E, cada vez mais escuro. E mais feio. E muito mais triste.

Se vinte e dois homens de camisa cor de ouro quiserem, souberem e puderem conquistar o título máximo, o brasileiro doente, de bolso vazio, de estômago vazio, e todo vazio de esperança, ainda terá força para alegrar-se. Para acreditar. Para sobreviver. Para salvar-se. Caso contrário, quem nos acudirá? Que fé nos restará?

Aí, Pelé de todos nós. Aí, seleção de nossos amores. Força, time.

E que Deus, pelo menos no futebol, se lembre de ser brasileiro.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série