Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d127.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:16:46
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 127)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 27 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Um baile

Lydia Federici

Era uma festa para os velhinhos do asilo. E eles a esperavam com calma. Com aquela curiosidade morna que caracteriza os corações cansados.

O dia chegou. Veio muita gente de fora. Carregando pacotes. Trazendo embrulhos. A alegria ruidosa dos visitantes esbarrava na apatia dos internados. Sem conseguir derretê-la. Não que eles fossem mal-agradecidos. Mas é que gente velha, recolhida a um asilo, já não tem muitas ilusões.

Houve o lanche. Lanche extra. Com coisas diferentes e gostosas. Que uns, sempre inapetentes, mal beliscaram. Que outros, gulosos de olhos, mastigaram depressa, procurando, entretanto, disfarçar a avidez.

Foi feita a distribuição dos presentes. Os asilados, em fila, calmos, obedientes, sem alvoroço, recebiam seus pacotes. Houve lenços e maisa para os velhinhos. Coisas que ninguém se lembra de dar. Mas que fazem uma falta danada aos pobres pés sempre gelados e aos olhos gotejantes dos que muito já viram. Para elas, além de meias de lã e lenços bem bonitos, 'echarpes' e xales quentinhos. Que, até em dia de noroeste, pescoço e peito de gente idosa sentem frio.

Polidos mas frios obrigados agradeciam as lembranças. Os visitantes não se impressionaram em demasia com essa falta de entusiasmo. Uma coisa é criança. Cheia de vitalidade. Oura, a velhice. Cansada.

Para terminar a tarde de festa, haveria um puoco de música. Algumas moças do Lavignac haviam levado seus violões. E suas gargantas afinadas. A um dado momento, uma canção de melodia fácil, repleta de lembranças, chegou aos ouvidos de todos. E então, pela primeira vez no dia, os velhinhos deixaram de lado sua dormência. Seu ar enfastiado. Sua pose natural de indiferença. Com movimentos despertos, ajeitaram os bancos. Em círculo. Os homens, empertigados, de um lado. As mulheres, do ouro. Sentaram-se. Pouco a pouco iam debruçando o corpo para a frente. Em direção à música. Cabeças começaram a balançar, acompanhando o ritmo. Sorrisos apareceram.

Uma polca, muito brejeira, encheu o ar. Mãos enrugadas iniciaram, em surdina, o acompanhamento. As velhinhas, mais afoitas, enviesavam rápidos olhares aos companheiros. E eles, nada. E então uma morena sequinha, de cabelos encarapinhados, levantou-se do banco. Com a mão direita sobre o peito e a esquerda gentilmente dobrada para trás, fez uma mesura a uma outra asilada.

"Quer dar-me o prazer?" E as duas, no centro da roda que se alargara, puseram-se a dançar. Outro par feminino se formou. E o baile animou.

Só os cavalheiros não se atreveram a dançar. Não eram disso.

Escurecia quando o baile terminou. Sob protestos gerais. Principalmente das quatro bailarinas que queriam só mais uma. Jorge Martins, num arroubo poético, presenteou as dançarinas com ramos de flores roubadas no jardim.

Nunca houve maior alegria no asilo dos velhinhos. Nem em bailes da cidade. Garantido.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série