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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 122)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 22 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Nascimento de uma ideia

Lydia Federici

Nasceu porque tinha que nascer. Ninguém sabe se foi no dia certo. E da forma por que tinha que ser. O caso é que nasceu. Abençoado dia!

Como foi?

Um grupo de diretores do Clube Sírio-Libanês foi até a cadeia local. Para fazer a entrega de um gabinete de barbeiro. Coisa que faltava naquele prédio. Que fazia - imaginem se não - uma falta doida aos presos.

Um daqueles senhores, andando por um dos corredores, encontrou, preso, um rapaz ainda novo. Muito novo. Havia sol lá fora. Ruas por onde andavam crianças, homens e mulheres. Livres. Donos de uma liberdade que aquele quase garoto já havia perdido. Pelo menos temporariamente. Que tinha ele feito para ter merecido aquela reclusão? Ora. Coisa que todos os condenados fazem. Transgressão à lei. Humana ou divina. Roubos, assaltos, agressões, desordens, assassínio. Mas, tão novo assim? Tão saudável, podendo ganhar honestamente o seu pão? Por que roubara? Por que brigara?

Sabia lá. Tinha-o feito. Estava encerrado o assunto.

Não. Não estava. O sol brilhava lá fora. Ali dentro, trancado, havia um menino crescido, amargurado, cheio de revolta. Como se criara? Que faziam seus pais? Não tivera pais. Não os conhecera, pelo menos. Fora criado num asilo. No meio de outras crianças também abandonadas. Abandonadas como? Não tinham um teto? Não recebiam comida? E roupa? Não recebiam instruções? Que mais pretendia ou pretendera ele?

O rapaz olhou-o com raiva. Com ar de desprezo, parecia dizer: "Como vocês, engravatados, cheios de família e de dinheiro, são imbecis".

À noite, em sua casa, Wadi Pedro não conseguia dormir. O rapaz estava sempre em sua frente. Acusador. Amargurado. Por que? Não vivera ao léu. Fora criado em asilo. Dormira em cama. Comera em mesa. Sempre à hora certa. Tivera roupa. Pobre, sim. Um uniforme, é verdade, mas não andara nu. Aprendera o indispensável. Por que preferira seguir outro caminho? E, principalmente, por que aquela revolta profunda contra o mundo? Contra tudo e todos?

Do que é que uma criança precisa? Wadi voltou a seu tempo de menino. Em sua terra natal. Do que gostava ele? De sua casa, é claro. De tudo que nela havia. Começou a lembrar-se. Um nó apertou-lhe a garganta quando se viu no colo de sua mãe. Sentiu-lhe a mão leve a brincar-lhe com os cabelos. Sentiu a segurança daquele carinho. O calor de saber-se amado. Amparado, ensinado, corrigido, dirigido com doçura e compreensão. Tendo ouvidos prontos parra ouvir-lhe as perguntas, os problemas importantes de sua vida de criança.

Se ele estivesse estado num asilo, quem teria tido tempo para acariciar-lhe os cabelos? Quem lhe pousaria a mão sobre o ombro? Quem daria atenção às suas mil perguntas? Aos seus problemas? Só cama, comida, roupa, um pouco de instrução lhe chegariam?

Foi assim, meus amigos, que nasceu a ideia da "Cidade da Criança".


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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