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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 119)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
18 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Conversa de cozinha
Lydia Federici
Dona Sinhá guardou sua xicrinha bonita de café, desamarrou o avental, puxou para baixo a saia escura que sempre se lhe
"engruvinhava" na cintura. E, de repente, percebeu que estava com vontade de conversar. Abriu a janela, impacientando-se com a dureza dos dois trincos de segurança. Por sobre o muro baixo, curiosou a casa da vizinha. Aguçando os ouvidos, percebeu o
barulho leve de pratos sendo manuseados com cuidado.
"Dona Oráida?". Avançou o rosto para fora. "Dona Oráida!" A outra respondeu. Uma sombra arredondada apareceu contra o vitrô. "Diga, dona Sinhá. Boa noite".
"A senhora está ocupada? Não tem vontade de bater um papo?"
"Estou acabando a louça. Venha a senhora aqui. Vá entrando".
Um minuto depois, na porta dos fundos, dona Sinhá apareceu. Subiu o degrau levantando o corpo pesado com esforço, as duas mãos agarradas no batente. Como não se incomodava de ficar na cozinha, ficaram as duas ali, até a dona da casa terminar de
guardar as coisas, enxugar a pia, estender sobre a tampa do fogão pequeno o pano de saco, imaculadamente branco.
"Ainda está cheirando bem a sua cozinha", elogiou, com prazer, aspirando o ar, a visita refestelada na velha cadeira de balanço. Dona Oráida sorriu com o cumprimento da amiga. "Cheira mesmo à cozinha. A comida gostosa. Até me lembra a cozinha da
fazenda. Com as linguiças dependuradas sobre o fogão de lenha. O toucinho a defumar. A carne assada criando no forno".
Falava em êxtase, largando as frases devagar, para que elas impregnassem o ambiente. As duas puseram-se a fungar o ar.
"Havia sempre um tacho de doce. Cheirando a canela. A cravo da Índia".
Foi dona Oráida, louca por doce, que lembrou o queimado louro do açúcar. O perfume do limão quebrando a doçura estonteante do melado.
"Ontem fui almoçar com a Celminha. (Celma era a neta de dona Sinhá). A senhora sabe, dona Oráida, a que horas ela foi para a cozinha? Só às 11. Imagine. E ao meio dia o almoço estava na mesa. Abriu uma lata de salmão. Veja só! Na terra do peixe,
peixe de lata. Cozinhou umas batatas. Fez o arroz. Uma salada. E pronto. Ainda pôs o exaustor a funcionar. Foi essa, aliás, a primeira coisa que fez ao pisar na cozinha. Mandou prá fora o pouco cheiro que ia levantar-se daquele fogão todo bonito. A
senhora sabe que cheiro tem cozinha moderna? Repare quando entrar em alguma. Não é cheiro de comida, não. É cheiro de tinta dos armários de parede. Um enjoo. É cheiro da cera que passam no chão. É cheiro de varsol, de caól, de detergente. É tudo
quanto é cheiro. Menos o de cozinha. A senhora repare, dona Oráida. Antes, para abrir o apetite, era só dar uma chegada até a cozinha. Hoje, só mesmo com exaustor funcionando. E tomando, no mínimo, uns três aperitivos".
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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