GENTE E COISAS DA CIDADE Conversa de cozinha
Lydia Federici
Dona Sinhá guardou sua xicrinha bonita de café, desamarrou o avental, puxou para baixo a saia escura que sempre se lhe
"engruvinhava" na cintura. E, de repente, percebeu que estava com vontade de conversar. Abriu a janela, impacientando-se com a dureza dos dois trincos de segurança. Por sobre o muro baixo, curiosou a casa da vizinha. Aguçando os ouvidos, percebeu o
barulho leve de pratos sendo manuseados com cuidado.
"Dona Oráida?". Avançou o rosto para fora. "Dona Oráida!" A outra respondeu. Uma sombra arredondada apareceu contra o vitrô. "Diga, dona Sinhá. Boa noite".
"A senhora está ocupada? Não tem vontade de bater um papo?"
"Estou acabando a louça. Venha a senhora aqui. Vá entrando".
Um minuto depois, na porta dos fundos, dona Sinhá apareceu. Subiu o degrau levantando o corpo pesado com esforço, as duas mãos agarradas no batente. Como não se incomodava de ficar na cozinha, ficaram as duas ali, até a dona da casa terminar de
guardar as coisas, enxugar a pia, estender sobre a tampa do fogão pequeno o pano de saco, imaculadamente branco.
"Ainda está cheirando bem a sua cozinha", elogiou, com prazer, aspirando o ar, a visita refestelada na velha cadeira de balanço. Dona Oráida sorriu com o cumprimento da amiga. "Cheira mesmo à cozinha. A comida gostosa. Até me lembra a cozinha da
fazenda. Com as linguiças dependuradas sobre o fogão de lenha. O toucinho a defumar. A carne assada criando no forno".
Falava em êxtase, largando as frases devagar, para que elas impregnassem o ambiente. As duas puseram-se a fungar o ar.
"Havia sempre um tacho de doce. Cheirando a canela. A cravo da Índia".
Foi dona Oráida, louca por doce, que lembrou o queimado louro do açúcar. O perfume do limão quebrando a doçura estonteante do melado.
"Ontem fui almoçar com a Celminha. (Celma era a neta de dona Sinhá). A senhora sabe, dona Oráida, a que horas ela foi para a cozinha? Só às 11. Imagine. E ao meio dia o almoço estava na mesa. Abriu uma lata de salmão. Veja só! Na terra do peixe,
peixe de lata. Cozinhou umas batatas. Fez o arroz. Uma salada. E pronto. Ainda pôs o exaustor a funcionar. Foi essa, aliás, a primeira coisa que fez ao pisar na cozinha. Mandou prá fora o pouco cheiro que ia levantar-se daquele fogão todo bonito. A
senhora sabe que cheiro tem cozinha moderna? Repare quando entrar em alguma. Não é cheiro de comida, não. É cheiro de tinta dos armários de parede. Um enjoo. É cheiro da cera que passam no chão. É cheiro de varsol, de caól, de detergente. É tudo
quanto é cheiro. Menos o de cozinha. A senhora repare, dona Oráida. Antes, para abrir o apetite, era só dar uma chegada até a cozinha. Hoje, só mesmo com exaustor funcionando. E tomando, no mínimo, uns três aperitivos".

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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