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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 115)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 13 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Dia das Mães

Lydia Federici

Conheço-a de vê-la passar e repassar. Há anos que a conheço assim. Anda sempre de preto. Usa os cabelos longos presos num magro e severo birote. Repuxa-os tanto que eles formam uma touca esbranquiçada da fronte à nuca.

Não sei quem é. Nem onde mora. Houve tempo em que ela passava acompanhada por uma outra senhora. Mais moça. Filha, com certeza. Mas, de anos para cá, anda sempre só. Creio que vai, todo santo dia, à primeira missa do Embaré. Caminha sempre do mesmo jeito, com as mãos cruzadas à altura da cintura, segurando um véu e um terço de contas escuras e cruz prateada. Não há noroeste que lhe amoleça os passos miúdos. Como não há chuva que os faça mudar de ritmo, apressando-os.

Nunca nos falamos. Às vezes, ao cruzarmo-nos pela rua, ela levanta os olhos. Sorrio, então. E ela também sorri. Mas nunca tive coragem de desejar-lhe, em voz alta, um bom dia. E ela, se alguma vez o quis, também nunca o fez. Timidez de ambas as partes, creio eu.

Ontem, ela passou. Como sempre. Um chalezinho curto, de lã preta, cobria-lhe os ombros magros. Achei-lhe as costas mais curvas. Toda ela, mais mirradinha. Cruzei a rua e, como ela ia passar sem olhar-me, barrei-lhe o caminho. Ergueu a cabeça, ligeiramente admirada. Custou a reconhecer-me. Vi-lhe, através das lentes dos óculos antigos, os olhos úmidos, com as pupilas esbranquiçadas. Senti um nó na garganta. Ia dizer-lhe que era a moça da casa da frente, quando seu sorriso habitual apareceu-lhe nos lábios finos e murchos.

"Criei coragem. Vim dar-lhe bom dia". Falei e esperei. Seu sorriso acentuou-se. Uma mão pequena, de dedos cheios de nós, saiu de sob o xale. Fria ao contato. Mas transmitindo um calor amigo. "Bom dia. Bom dia! Sempre lhe desejei, no coração, um bom dia", falou comovida, pigarreando.

"Eu também. Mas só agora consegui pô-lo para fora". E ri. contente de vez.

"Como foi que você se decidiu?" Sua voz demonstrava curiosidade e, ao mesmo tempo, receio de ser indiscreta. Olhava-me levantando muito a cabeça. Como me decidira? Não sabia. Andava, havia uma semana, a pensar no dia das "Mães". Com um carinho muito grande a transbordar do peito. Querendo expandir-se sobre todas as mães. Fora isso, com certeza. Falava à toa, em tom de brincadeira para disfarçar a emoção. Procurando, meio envergonhada, justificar aquele impulso que já me estava pondo o rosto a arder.

"Dia das Mães". Sua cabeça caiu sobre o peito. "Mãe. Mãe de três filhos. Três filhos que estão no céu... Mãe sem um beijo. Mas Deus é grande!"

Ai! Pensei na alegria de mães que têm filhos para acarinhá-las. Pensei na alegria de filhos que têm mães para abençoá-los. Pensei na tristeza saudosa de filhos que só poderão homenagear a memória de mães ausentes. Mas não sabia que havia mães que não têm filhos para beijá-las.

Para essas mães sem filhos, o nosso pensamento carinhoso.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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