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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 113)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 11 de maio de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Carne Seca

Lydia Federici

A velhinha acordou de manhã, assustada com o bater do sino da capela. Passou a mão encarquilhada pelos olhos lacrimosos. E, sentada, muito encolhida,na cama estreita, ficou chupando os lábios murchos. Como se estivesse mastigando algo de muito especial.

Foi para o refeitório com cara fechada. Fez "hum" ao bom dia das companheiras. E ficou quieta, ensimesmada. A tomar seu café com ar pouco satisfeito. Tinha fome, sim. Mas não de café.

Quando todas se levantaram, a velhinha mal-humorada, com passos miúdos e silenciosos, caminhou até a copa. Levantou a cabeça e aspirou o ar. Nada. Coçou o nariz com as costas da mão.

"Irmãzinha". A freira de grande touca branca virou ligeiramente a cabeça. Suas mãos não interromperam, de todo, o trabalho.

"Irmãzinha. Acordei, hoje, com desejo".

"Desejo de que, Maria?". Os olhos, sob a touca de linho, sorriam à confissão simples. Mas a voz permaneceu a de sempre. Calma. Paciente. Incolor. A velhinha, dito o começo - e fora um começo difícil - embalou: "Desejo de comer carne seca. Faz muito tempo que a gente não vê disso, não faz Mas hoje estou com esse desejo. A irmã arranja um prato de carne seca para Maria?" Falava com voz de criança encaprichada. Quase choramingando. As mãos magras, inconscientemente cruzadas em prece.

A touca branca encobriu o rosto da freira, quando ela, mordendo o lábio, abaixou a cabeça. Como explicar à asilada que não havia carne seca? Suspirou. Falou com simplicidade. No mesmo tom incolor. A velhinha não quis entender.

"É só um pouquinho. Só para provar. Um naco só pra mim, não precisa fazer para todos. A irmãzinha arranja um prato para Maria, não arranja? Estou com tanto desejo".

E repetia, com voz lamurienta, seus pobres argumentos. A freira interrompeu-a, explicando-lhe, com voz bem clara, que não havia carne seca! Que não era possível fazer prato especial para ninguém.

Mas a velhinha, persistente como criança quando enfia coisa na cabeça, não queria entender. Tinha acordado com desejo. Desejo de comer carne seca. Só um naquinho chegava. E, chatinha como criança, a coitada não parava de repetir a cantilena. A irmã aguentou cinco minutos. Numa decisão, mandou-a tomar sol no pátio. A velhinha foi até a porta. Voltou. E recomeçou a falar. Uma xícara, depois de mais 10 minutos, escapou das longas mãos brancas. E então, impaciente, a freira teve uma inspiração: "Maria. Vá para a capela. Reze para S. Vicente de Paulo. Só ele é que pode atender seu desejo. Vá. Reze bastante".

Na hora do almoço, Maria esperou seu pratinho de carne seca. Ele não veio. A velhinha, de cabeça baixa, não quis comer nada. A irmã olhou-a, de longe, com o coração cheio de pena. À tarde, um chofer entregou, na porta do asilo, um saco de mantimentos. Oferta de pessoa anônima. A freira abriu o saco. Era um fardo de carne seca. Tão verdadeiro quanto esta história. Perguntem ali, no asilo da Rodrigues Alves.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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