GENTE E COISAS DA CIDADE Carne Seca
Lydia Federici
A velhinha acordou de manhã, assustada com o bater do sino da capela. Passou a mão encarquilhada pelos olhos
lacrimosos. E, sentada, muito encolhida,na cama estreita, ficou chupando os lábios murchos. Como se estivesse mastigando algo de muito especial.
Foi para o refeitório com cara fechada. Fez "hum" ao bom dia das companheiras. E ficou quieta, ensimesmada. A tomar seu café com ar pouco satisfeito. Tinha fome, sim. Mas não de café.
Quando todas se levantaram, a velhinha mal-humorada, com passos miúdos e silenciosos, caminhou até a copa. Levantou a cabeça e aspirou o ar. Nada. Coçou o nariz com as costas da mão.
"Irmãzinha". A freira de grande touca branca virou ligeiramente a cabeça. Suas mãos não interromperam, de todo, o trabalho.
"Irmãzinha. Acordei, hoje, com desejo".
"Desejo de que, Maria?". Os olhos, sob a touca de linho, sorriam à confissão simples. Mas a voz permaneceu a de sempre. Calma. Paciente. Incolor. A velhinha, dito o começo - e fora um começo difícil - embalou: "Desejo de comer carne seca. Faz muito
tempo que a gente não vê disso, não faz Mas hoje estou com esse desejo. A irmã arranja um prato de carne seca para Maria?" Falava com voz de criança encaprichada. Quase choramingando. As mãos magras, inconscientemente cruzadas em prece.
A touca branca encobriu o rosto da freira, quando ela, mordendo o lábio, abaixou a cabeça. Como explicar à asilada que não havia carne seca? Suspirou. Falou com simplicidade. No mesmo tom incolor. A velhinha não quis entender.
"É só um pouquinho. Só para provar. Um naco só pra mim, não precisa fazer para todos. A irmãzinha arranja um prato para Maria, não arranja? Estou com tanto desejo".
E repetia, com voz lamurienta, seus pobres argumentos. A freira interrompeu-a, explicando-lhe, com voz bem clara, que não havia carne seca! Que não era possível fazer prato especial para ninguém.
Mas a velhinha, persistente como criança quando enfia coisa na cabeça, não queria entender. Tinha acordado com desejo. Desejo de comer carne seca. Só um naquinho chegava. E, chatinha como criança, a coitada não parava de repetir a cantilena. A irmã
aguentou cinco minutos. Numa decisão, mandou-a tomar sol no pátio. A velhinha foi até a porta. Voltou. E recomeçou a falar. Uma xícara, depois de mais 10 minutos, escapou das longas mãos brancas. E então, impaciente, a freira teve uma inspiração:
"Maria. Vá para a capela. Reze para S. Vicente de Paulo. Só ele é que pode atender seu desejo. Vá. Reze bastante".
Na hora do almoço, Maria esperou seu pratinho de carne seca. Ele não veio. A velhinha, de cabeça baixa, não quis comer nada. A irmã olhou-a, de longe, com o coração cheio de pena. À tarde, um chofer entregou, na porta do asilo, um saco de
mantimentos. Oferta de pessoa anônima. A freira abriu o saco. Era um fardo de carne seca. Tão verdadeiro quanto esta história. Perguntem ali, no asilo da Rodrigues Alves.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|