GENTE E COISAS DA CIDADE O ladrão
Lydia Federici
Acontece na vida de qualquer família. Vive-se na mesma casa até que chega o dia da mudança. E então a gente muda. Com
alegria, quando se vai para uma casa nova e melhor. Chorando, quando o canto é menor e, principalmente, mais econômico.
Foi este último o caso da família Silva. Família grande, morando em casa grande, a redução dos membros e dos recursos familiares acabou por impor às três irmãs remanescentes, a mudança para uma residência menor.
As três solteironas, engolindo lágrimas, liquidaram o supérfluo, juntaram o necessário e, sem olhar para trás, valentemente, mudaram-se. Doca levou a gaiola do papagaio. Yayá acomodou no carro o Peludo, o velho, cego e surdo Peludo, e Santina, a
menos sentimental, amarrou, com belas promessas, a Dita cozinheira.
A casa, num bairro que começava a acordar para o progresso, era pequena. A quinta parte da outra: só dois quartos e duas salas. Mas era uma mor. Tinha 10 metros de gramado para o sono ensolarado do Peludo, e uma vasta vizinhança deserta que
garantia ausência de reclamação contra as meias horas de falatório do Louro de língua suja. Suja por culpa do irmão. A única lembrança viva do querido Ricardo.
Pacatas, inteligentes, resignadas, as 3 irmãs acomodaram-se logo à nova vida. Havia menos trabalho. Mais horas de lazer. Preenchidas cristãmente.
Mas um dia o sossego acabou. Uma notícia de jornal, repetida com insistência, começou por assustar e terminou preocupando, de vez, as 4 mulheres felizes daquela casa. Não houve comentários em família. Ao contrário. Todas leram mas nenhuma piou.
Plenamente responsáveis, cada qual, entretanto, tomou, isoladamente, as providências que julgou necessárias.
Yayá renovou a assinatura da inscrição da casa. Voltou de lá com um embrulhinho que guardou sob o travesseiro. Santinha pôs trincos de segurança nas janelas e portas, e passou a usar uma correntinha
com um amuleto que lhe deformava, sob o vestido, o busto outrora sem saliências. Doca aumentou a amizade com o vendeiro da esquina. Soube que ele dormia sobre o armazém, que tinha sono leve. Claro que ouviria. Imagine se não ia acudir. Fosse lá a
hora que fosse. E Dita, de dia, trancava a porta da cozinha. Disse que o sol lhe incomodava "o zóio".
E uma noite aconteceu. Ouviram, todas, o barulho de porta ou janela sendo forçada. Quatro sombras apavoradas, trêmulas, descalças, de longas camisolas, reuniram-se, por coincidência, no quarto grande da frente. Levaram a mão à aboca e quatro
apitinhos fizeram-se ouvir, tênues, curtos, roucos, inaudíveis a 10 metros. E continuavam a soar descompassados, curtos de fôlego.
E o ladrão? Haja pernas. Casa de loucos. Aquilo era hora pra ensaiar concerto? No escuro? Quem pode ter confiança?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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