GENTE E COISAS DA CIDADE Aberto ou fechado?
Lydia Federici
Antes, todos eles eram abertos. E ninguém dizia nada. Nem contra nem a favor. Servia aos passageiros no inverno e no verão. nos dias ensolarados e nas horas de
temporal ou de chuva miúda. Diga-se, porém, de passagem, muito de leve, que, nesse tempo, os bondes santistas funcionavam e possuíam cortinas que funcionavam muito bem. Os passageiros de alma mais sensível ficavam, quando muito, aborrecidos com o
que acontecia ao cobrador. Obrigado, coitado, nos dias de chuva, a molhar-se no estribo escorregadio. Quanto ao resto, parecia não haver anormalidade. Capaz de provocar resmungos, ou de exigir providências. Pelo menos ninguém reclamava. O santista
era um povo feliz.
Um belo dia, surgiu a novidade. Apareceu um bonde fechado. A Companhia é que inventara a moda. Por questão de humanidade. Assim, o cobrador não mais apanharia chuva. Nem seria, no estribo, apanhado por um
caminhão meio bêbado. Nem ele, nem os sacrificados pingentes. E havia outra questão. De ordem financeira e essa realmente de importância magna: desapareceria a evasão de níqueis. A borboleta controlaria o cobrador. Nada de receber 8 passagens e só
bater - drim-drim-drim - sete. Onde já se viu?
Parece que a experiência, em benefício do conforto humano e dos cofres da Companhia, deu certo. Mais bondes fechados passaram a correr pelos trilhos. Até o cobrador, se perdera sua margem extra de lucro,
acabou por aceitar a inovação: passava a trabalhar sentado. Livre de uma queda. Livre do mau e do belo tempo. Livre de um para-lama intrometido. Compensava.
Acontece, porém, que o santista pegou mania de reclamar. Talvez por ter aprendido a raciocinar. Ou porque tudo, na verdade, comporta reclamação. Ficou dura, de fato, a vida de todos. Vai daí o desabafo.
Como é que, nas tardes abafadas, nas noites calorentas, a gente pode refrescar os pulmões em viagens de vai e vem pela praia? Dentro do bonde fechado? Não. Ninguém é doido. Cozimento só depois: no inferno.
Somos caranguejos para andar de banda? Sentados nos incômodos bancos laterais? Torrando a nuca ao sol? Gastando fortuna em fixadores que não fixam cabelos que o vento de lado penteia à sua moda? E que nariz,
à noitinha, depois de um dia de trabalho transpirado, suporta o apinhamento humano?
Reclama-se à beça. Principalmente gente da Ponta da Praia, zona servida pelos bondes fechados. Já não chegavam os ônibus?
O caso é que os acidentes nos fechados diminuíram sensivelmente. Ninguém é carregado dos estribos. Que valha isso contra o calor, o abafamento, o despentear e o andar de banda. De mais a mais, a maioria dos
passageiros é constituída por homens. Entre ficar perigosamente dependurado no estribo, com um cotovelo masculino fincado na costela flutuante, e sentir-se seguro, de pé, dentro do bonde fechado, com suaves curvas femininas acolchoando impactos de
Leste e de Oeste, não há dúvida quanto à escolha.
Por isso tudo, minha amiga, minha pobre amiga da Ponta da Praia, o remédio é aguentar ou mudar para outro bairro, servido por bonde aberto.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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