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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 97)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 20 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Abstinência

Lydia Federici

Foi para o fundo do quintal enlameado. Assim que o viu, Pery começou a abanar o rabo, ganindo baixinho.

"Quéto, Piry. Num truxe comida, não. Inda é muito cedo. Num dianta me cherá. Quéto, Pirizinho".

Com a mão de unhas sujas acariciou a cabeça fina do cachorro. Coçou-lhe, com meiguice, o pescoço que a cordinha pelara. Piry parou de sacudir-se. Abaixou a cabeça amarela. O rabo pendeu-lhe, inerte. A criança retirou a mão para suspender a tira que lhe segurava as calças, remendadas. O cachorro irrequieto novamente, pôs-se a cheirar, fungando, as mãos do moleque. Depois, com um ganido, encostou o corpo de pelo curto e sujo nas pernas magras da criança. Levantou o focinho e ficou a olhá-lo com os olhos tristes, a pedir mais festas, mais carinho.

Toninho pegou um tijolo, ajeitou-o perto do caixote de tábuas escuras, sentou-se sobre ele.

"Deita aqui, Piry. Aqui tá seco". O cachorro deitou-se a seu lado, encostando o corpo contra a perna do garoto. Pousou a cabeça, de manso, sobre o joelho pontudo do menino. A mão suja ficou brincando com a pata peluda.

"Piry. Se vó num traze cumida nós vamos passá mal. Num tem nada na cuzinha. Dona Linda, quano fui buscá tua cumida, disse que nun tinha nada. Nem um osso prá tu ela tinha. Tu credita, Piry?"

Pery gemeu baixinho. Lambeu a mão do dono. Ficou lambendo-a com sofreguidão.

"O que é que tu tá cherano? Num é cumida, Piry. Já disse que hoje inda num cumi nada. Ou tu pensa que eu tinha corage de te enganá?"

O cachorro levantou a cabeça, olhou o moleque, passou a língua pelo bigode esbranquiçado. Voltou a encostar o focinho na perna magra. De vez em quando, gania, bem baixinho. O garoto rabiscava o chão úmido.

"Piry. Tu sabe que água mata a fome?" Levantou-se, pegou a lata enferrujada, despejou longe o resto de água. Pery viu-o afastar-se. Ficou esperando, o rabo sacudindo de leve, a cordinha esticada apertando-lhe o pescoço rapado.

"Pronto". Sorria. "Oha, Piry". Bateu no estômago estufado. "Olha como enchi a barriga. Só água. Bebe, Piry". Segurava a lata à altura do focinho do cachorro. Este teimava em cheirar-lhe a mão. O moleque escondeu-a.

"Tu sabe que eu te enganei, hein, Piry?" Falou com tristeza. Envergonhado. "Minti, sim. Encontrei um osso bem bom. Guardei ele pr'amanhã. Hoje num pode. É dia de bistinença. Dona Olga, tu sabe, a dona Olga do Grupo, expricô que hoje ninguém pode cumê carne. Oso é carne. Mas eu vô arranjá outra coisa. Se num encontrá, lá prá meia noite, quando começa amanhã, eu trago o osso. Tu, aí, roe ele inteirinho. Mas hoje num pode. É pecado. Deus num qué. Tu compreende, Piry?"


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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