GENTE E COISAS DA CIDADE Começo de noite
Lydia Federici
A casa abafava-a. Porque fazia calor e porque, sem saber a razão, ela estava num de seus dias de raiva.
"Podem jantar. Vou dar umas voltas por aí". Bateu a porta da frente.
E saiu. Caminhou até a praia, pela avenida larga. De alguns palacetes chegava até a rua um cheiro gostoso de bife bem temperado, e de peixe frito. Ficou mais danada. Insossa até mais não poder.
Foi sentar-se num banco do jardim, do lado da praia. O mar, dentro da noite, era um breu sem fim. Só na beira, junto à praia, havia uma ou duas franjas claras. Virou-se no banco. Ficou olhando os prédios
altos, com poucas janelas e terraços iluminados.
"Não é que toda essa gente está fazendo economia de luz".
Desceu os olhos para a avenida. Aquilo estava melhor. As luzes vermelhas dos carros que passavam para o Gonzaga pareciam um ros...
"Moça. Me dá uma esmola."
Assustou-se. Olhou para o vagabundo de boca entreaberta. Malcriado no modo de pedir. Atrevido na postura.
"Não tenho nada". E como ele continuasse curvado para ela, cada vez mais, levantou-se e atravessou o jardim. O coração batia-lhe na garganta. Para acalmar-se continuou a andar pela avenida iluminada e cheia
de gente. Da mesa de um bar, um desconhecido convidou-a a sentar-se. Ergueu a cabeça, com orgulho. Seguiu junto ao meio fio. Meia quadra adiante, um carro encostou. Veio o convite para uma volta. Insistente. Persuasivo. Repetido de 4 em 4 metros.
Viu a porta da Igreja aberta. Atravessou a pequena praça e, com um suspiro, livrou-se de mais aquele importuno. Embarafustou pela nave, sentindo o rosto arder. De vergonha e de raiva. Que diabo de cidade é esta em que uma moça não pode sair sozinha
sem que pensem que ela anda à procura de companhia?
Só então percebeu que a Igreja estava repleta de gente. Pra que seria? Altares encobertos por cortinas roxas. Quaresma. Olhou ao redor, ainda assustada. Descobriu um banco com um lugar vago. Descansaria um
pouco. Para acalmar-se. Não podia aparecer em casa com cara de fúria. Alguém estendeu-lhe um papel impresso. Agradeceu. Heinrich Schütz. 1585-1672. Narração da Paixão e Morte... Lembrou-se do convite de Julieta. Pela 1ª vez em Santos, a Paixão de
Shütz, pelo Coral de Câmara. No sábado. Era sábado? E agora?
Um coro enche o silêncio da igreja iluminada. As cabeças dobram-se para os folhetos impressos. Uma voz de homem, suava, agradável, bem timbrada, desce lá de cima. Outra, grave e profunda, estabelece o diálogo
monótono. Não compreende aquela música. Mas há paz ali. Respeito. E uma beleza triste que lhe tranquiliza a alma insatisfeita. Sorriu. Sem raiva.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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