GENTE E COISAS DA CIDADE Carrinhos de feira
Lydia Federici
Foi um comodista que o inventou. Isso ninguém me tira da cabeça. Obrigado, com certeza, a acompanhar a voluntariosa mulher à feira, cansou os braços com o peso das
sacas recheadas. Entenda-se, de início, que isso aconteceu no tempo em que se podia comprar coisas. muitas coias. Milhões de coisas.
À noite, espichado no sofá, massageando os braços doloridos, o marido-mártir pôs-se a pensar. Seu sossego acabara. Carregador ele não ia ser. Teria que inventar algo. Uma hérnia. E Zulmira acreditaria? Não.
Ficou cansando o cérebro em benefício do descanso futuro do corpo.
O filho, puxando um 'taminhão' cheio de pedras, sobre o tapete da sala, provocou-lhe o estalo. Puxar ou empurrar, sobre rodas, um peso, é muito mais fácil que carregá-lo. Muito mais cômodo. Menos cansativo. E
foi assim, suponho, que nasceu a ideia dessa praga das feiras: o carrinho.
Como, no fundo, no fundo, todo mundo é comodista, a ideia genial do empurra-peso pegou bonito. E não era prá pegar? Em pouco tempo, comercializada a novidade salvadora, as feiras ficaram tão atravancadas de
rodinhas chiadoras que os fiscais, por necessidade absoluta, mudaram, insensivelmente, de função. De guardas de mercadorias e preços, passaram a guardas de trânsito. E daí? Não era este um problema mais premente que aquele?
Os primeiros carrinhos que surgiram, de fios de arame espaçados, foram o encanto dos pardais. Sacolejando na irregularidade do calçamento, 6 metros de sacudidas, 8, no máximo, eram suficientes para estourar
qualquer desses fortes e bem colados saquinhos da indústria papelífera nacional. O carreiro de arroz, na rua empoeirada, garantia um almoço fácil e nutritivo. Que importava aos pássaros o desespero das compradoras? O mundo sempre foi assim:
desgraça de uns é a boa sorte de outros. Por que passarinho há de ter melhor sentimento que o homem? Bobagem.
Sanado o mal - vestiram, internamente, o carrinho - o problema ficou definitivamente resolvido. As donas de casa despreocuparam-se com as perdas forçadas. Ficou um probleminha: no fundo da apa, o feijão
estria misturado à ervilha e dentro de um caqui estaria um tomate. Mas que importância tinha isso? O essencial era não perder. Não desperdiçar. A passarinhada, com os olhos compridos, que tivesse paciência. Fosse lutar pela sua minhoca de cada dia.
Como era bonito ver, na feira, o corso dos carrinhos. Atulhados de pacotes, latas, embrulhos, jornal, couve-flor, penachos de verdura e palmas de Santa Rita, a simples visão daquela fartura dava para
contrabalançar os inconvenientes dos esbarrões seguidos. Transitando em zigue-zagues, engatando em saias, rasgando meias, virando em buracos, rodando sobre pés ou inocentemente estacionados, os carrinhos eram um hino à fartura.
É. Mas a época dos carrinhos está no fim. Quem vai sacudir-se pela rua afora, puxando um troço que carrega uma cebola, dois tomates, três laranjas, 4 cenouras, 5 folhas de couve e 6 grãos de arroz?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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