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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 95)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 18 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Carrinhos de feira

Lydia Federici

Foi um comodista que o inventou. Isso ninguém me tira da cabeça. Obrigado, com certeza, a acompanhar a voluntariosa mulher à feira, cansou os braços com o peso das sacas recheadas. Entenda-se, de início, que isso aconteceu no tempo em que se podia comprar coisas. muitas coias. Milhões de coisas.

À noite, espichado no sofá, massageando os braços doloridos, o marido-mártir pôs-se a pensar. Seu sossego acabara. Carregador ele não ia ser. Teria que inventar algo. Uma hérnia. E Zulmira acreditaria? Não. Ficou cansando o cérebro em benefício do descanso futuro do corpo.

O filho, puxando um 'taminhão' cheio de pedras, sobre o tapete da sala, provocou-lhe o estalo. Puxar ou empurrar, sobre rodas, um peso, é muito mais fácil que carregá-lo. Muito mais cômodo. Menos cansativo. E foi assim, suponho, que nasceu a ideia dessa praga das feiras: o carrinho.

Como, no fundo, no fundo, todo mundo é comodista, a ideia genial do empurra-peso pegou bonito. E não era prá pegar? Em pouco tempo, comercializada a novidade salvadora, as feiras ficaram tão atravancadas de rodinhas chiadoras que os fiscais, por necessidade absoluta, mudaram, insensivelmente, de função. De guardas de mercadorias e preços, passaram a guardas de trânsito. E daí? Não era este um problema mais premente que aquele?

Os primeiros carrinhos que surgiram, de fios de arame espaçados, foram o encanto dos pardais. Sacolejando na irregularidade do calçamento, 6 metros de sacudidas, 8, no máximo, eram suficientes para estourar qualquer desses fortes e bem colados saquinhos da indústria papelífera nacional. O carreiro de arroz, na rua empoeirada, garantia um almoço fácil e nutritivo. Que importava aos pássaros o desespero das compradoras? O mundo sempre foi assim: desgraça de uns é a boa sorte de outros. Por que passarinho há de ter melhor sentimento que o homem? Bobagem.

Sanado o mal - vestiram, internamente, o carrinho - o problema ficou definitivamente resolvido. As donas de casa despreocuparam-se com as perdas forçadas. Ficou um probleminha: no fundo da apa, o feijão estria misturado à ervilha e dentro de um caqui estaria um tomate. Mas que importância tinha isso? O essencial era não perder. Não desperdiçar. A passarinhada, com os olhos compridos, que tivesse paciência. Fosse lutar pela sua minhoca de cada dia.

Como era bonito ver, na feira, o corso dos carrinhos. Atulhados de pacotes, latas, embrulhos, jornal, couve-flor, penachos de verdura e palmas de Santa Rita, a simples visão daquela fartura dava para contrabalançar os inconvenientes dos esbarrões seguidos. Transitando em zigue-zagues, engatando em saias, rasgando meias, virando em buracos, rodando sobre pés ou inocentemente estacionados, os carrinhos eram um hino à fartura.

É. Mas a época dos carrinhos está no fim. Quem vai sacudir-se pela rua afora, puxando um troço que carrega uma cebola, dois tomates, três laranjas, 4 cenouras, 5 folhas de couve e 6 grãos de arroz?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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