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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 94)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 17 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Portuguesito em Santos

Lydia Federici

As cartas recebidas d'além mar eram tentadoras. Tentadoras demais para os seus 18 anos de aldeia perdia entre montes. E o rapaz, com a bênção do pai nos ouvidos, saiu de Portugal.

Não sei com que olhos viu Lisboa apequenar-se no horizonte. Não conhecia a cidade. Por ela não teria grandes amores. Mas era o último pedaço de sua terra. Choraram seus aveludados e calmos olhos castanhos? Não o contou a ninguém. Nos 12 dias de mar ficou a namorar a esteira branca. As águas revolvidas eram saudades, esperança e medo. Falou da esteira. Silenciou as emoções.

Chegou. Trouxe, nas faces coradas, a cor do belo vinho português. No fato completo, cheiro de oliveiras. Esperava-o a casa de um tio, perto da praia. Sorridente, olhou os primos. A língua viva que falavam deixou-o atordoado. Estranhou, sobretudo, a nudez em que viviam. Rapazes de praia. Negros de sol. Ele também tinha o pescoço e os braços queimados. E os pés. Mas era só.

Passou os primeiros dias em casa, num arregalamento constante de olhos. O máximo que o calor daqueles dias conseguiu obter do rapaz atarantado foi o abandono do paletó. Mas camisa branca, de colarinho engomado e manga larga e comprida, e a gravata de nó apertado, foram coisas que, por mais solicitado, não teve ânimo de abandonar. Saiu numa tarde, andando pela praia. Trocando pernas. À toda.

"Que tal, Joaquim? Gostou das santistas? São bacanas prá xuxu, hein?"

O rapaz enrubesceu. Cruzou os dedos sobre o paletó. "Acho as raparigas de cá um pouco afoitas". E nada mais falou. Parecia não entender este modo de viver.

Foi trabalhar, que para isso tinha ele vindo. Trabalhar, juntar dinheiro, iniciar uma vida que lá em Portugal, na sua quinta, não teria chance de empreender. Pegou um balcão. Durante oito horas ficou de pé, dando dois passos à direita, três à esquerda, sentindo os pés incharem dentro dos sapatos. À noite, na bacia do escalda-pés, viu seu campo. E no campo, ele, livre. À vontade, nas calças de veludo e nas botas largas. Apertou a cabeça entre as mãos ossudas. Fixou os olhos, bem abertos, na parede clara. Trancou os lábios. Não falaria. Não falaria. Haveria de habituar-se.

Na noite de Natal, já de camisa esporte, sempre com as duas manchas rosas nas faces queimadas, alegre, desinibido pelo vinho, sentiu vontade de falar. Encheu um Natal brasileiro, quente, com as neves dos montes portugueses, com histórias de debulha do milho e da caça às raposas. Foi o seu único grito de saudade. Sua confissão de arrependimento. Desabafou a rir, que chorar não adiantava. E homem não chora. Homem é Homem.

Faz um ano que Joaquim está em Santos. Vai à praia de 'short' justo. Olha as meninas. Sorri-lhes sem acanhamento. Discute Pelé. Toma caipirinha. De Portugal só tem as faces rosadas. E às vezes, uma boa saudade muito calma.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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