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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 89)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 11 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Ônibus

Lydia Federici

Ônibus, atualmente, em Santos, é essa coisa, sobre rodas malucas, que ziguezagueia pelos buracos de algumas de nossas ruas. Desconjuntando-se, ritmadamente, no retinir de lata e ferro. Sacolejando passageiros ensanduichados. Moendo rins de um chofer dolorido e impaciente. Esgotando a paciência geral. Liquidando alegria e bom humor.

Ônibus, atualmente, em santos, é pesadelo ou doce miragem. Pesadelo para os que o agarram. Miragem de quem os espera. É essa coisa que sempre passa por nós, vazio, quando estamos entre dois pontos. Ou que nunca chega, quando, há meia hora, trocando pés, chocamos diante do poste amarelo.

É um carro grande. De estômago elástico. Cuja entrada sempre se abre para engolir mais um passageiro. Que será triturado, gostosamente, no meio de outros infelizes.

Ônibus, hoje, em Santos, é coisa de espírito folgazão. Deveríamos, mais propriamente, dizer que tem espírito de porco. Já repararam que ele não suja as calças já sujas do trabalho? Nem a saia escura da comerciária? Mas, notaram com que prazer satânico ele engraxa o terno claro, recém saído da tinturaria? E a sacola de pelica branca da garota que vai, chique, ao cinema? Quem, no verão, segura aberta uma vidraça? E que, nas manhãs frias ou nos dias de chuva, consegue levantar o vidro? Nem por decreto de Deus. Por que dispara, desabalado, pela avenida da praia? Impedindo-nos de apreciar o mar. A doce e morena paisagem humana. E por que se arrasta nas feias ruas do centro, oferecendo-nos, à vista, paredes sujas, descascadas, e gente de ar triste e cansado?

Uma qualidade boa o ônibus santista tem. Ah! Essa ninguém lhe tira. É um salão ambulante de ginástica. E ginástica obrigatória. Pernas e braços exercitam-se, ali, a valer. Começa-se pela subida dos degraus. Com grande flexão de pernas. E continua-se lá dentro, sentados ou de pé, durante todo o trajeto. Músculos de ombros, braços, antebraços, mãos e dedos fortificam-se em pouco tempo. É brincadeira aguentar as saídas? E as brecadas? Fazem-se curvaturas, flexões, desvios e estiramentos da cabeça ao dedo mindinho. Faz mais ainda o nosso ônibus com o seu apinhamento, nas horas do 'rush', é, para as moças, um verdadeiro instituto de massagem. Corpo feminino, mesmo o que se encurrala num canto supostamente defendido, recebe, por módicos 15 cruzeiros, uma sessão completa de massageamento.

E os motoristas de nossos ônibus, como são? Os cobradores, contra cuja má vontade vive o santista a reclamar? Pois são como nós, passageiros. Há os bons e os ruins. Os gentis e cuidadosos. Os mal humorados e os estúpidos. Alguns, palavra de honra, mereceriam até beijos de agradecimento. Tão humanos são. Para outros poderíamos repetir o que resmungou, há dias, uma velhinha assustada:

"Coisa ruim como tu, nem no inferno acho que tem. T'esconjuro, diabo!"


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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