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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 87)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 8 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Adeus, loura

Lydia Federici

O boteco era infame. Pobre, sujo e escuro. Mas para os dois fregueses noturnos era o que havia de melhor no mundo. O chão embarrado, o balcão escuro, a mesa enodoada não os complexavam. Sentiam-se perfeitamente à vontade naquela tristeza escura.

Foram para o canto habitual. Onde a sua mesa, a única, sempre os esperava. Largaram os ossos, com um suspiro de satisfação, sobre as cadeiras capengas. Com gestos cansados, esvaziaram os bolsos, cada qual espalhando, na sua metade da mesa, notas amarfanhadas e alguns níqueis barulhentos. Com a mesma solenidade de caixa do Banco do Brasil - mas sem a sua pose empertigada - foram alisando, separando, empilhando e contando o dinheiro.

O baixinho, de barba rala, foi o primeiro a terminar a tarefa. Ficou à espera do companheiro. Paciente e silencioso. Coçando a gaforinha emaranhada.

"Rendeu, hoje, hein Cocó?" Falou com voz neutra. Vazia de vez. Sem admiração, sem inveja. Zé Mico aprendera a viver. Aceitando a sua e a sorte dos outros. Pra que se envenenar com mixarias?

Cocó guardou os maços de notas. Olhou, grande e vermelhão, para o dinheiro magro do amigo. Pensou um pouco. E levantou dois dedos sujos. Não gostava de falar. Tinha voz de galinha. Daí o apelido. Com o apelido não se incomodava. Mas danava-se quando ouvia a própria voz cacarejante.

Zé Mico gritou: "Mané. Duas louras. Bem geladas". E ficou à espera, passando a língua sobre os lábios grossos, secos. Guardou os níqueis num bolso, o maço de notas no outro. Continuou a coçar a cabeleira, os olhos acompanhando, com prazer, os movimentos do português a abrir as garrafas suadas.

Levaram meia hora para esvaziar as garrafas. Gostavam de cerveja porque levava tempo para acabar. E enchia-lhes o estômago, sem arder. E fazia-os dormir. Felizes. Sem sonhar. Enquanto bebiam, aos goles, estalando a língua, lambendo a espuma que lhes dava cócegas, o português, cansado, lavava meia dúzia de copos e cálices, enxugando-os com uma sacudida violenta da mão cabeluda.

Cocó deu um estalo com os dedos, espichou as pernas sob a mesa, estirou os braços, com preguiça. Sentia-se bem agora. Tirou do bolso um maço de notas, colocou-o, alisando-o e calcando-o, ao lado do copo vazio. Levantou-se, bateu na aba torta do chapéu e ia começar a andar quando o Mané pôs a mãozorra cabulada na manga esfarrapada de seu paletó.

"A cerveja subiu. Agora é sessenta, se me faz o favoire".

Os dois mendigos se entreolharam. Zé Mico contou mais vinte para o português. Contou com pena. Na estradinha do morro, sob o céu bonito, pôs-se a choramingar. Cocó esqueceu a raiva que sentia ao ouvir sua voz. E cacarejou: "País de ladrões. De vagabundos. Como é que pode?"


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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