Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d086.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 08/15/15 15:15:59
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 86)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 7 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Serventes de pedreiros

Lydia Federici

Andam pendurados por toda a cidade onde houver um prédio em construção. Isto quer dizer: n/ao existe um só canto em que se não os veja.

São rapazes de olhos fundos. Que a vida dura transformou em homens. Homens feitos, sofridos, vividos. mas que mostram, na cara larga e queimada, um sorriso fácil, aberto, franco. Cheio de dentes fortes. Baixos e atarracados, são, apesar de secos, impressão de força e vigor. E são vigorosos e fortes como poucos.

Quem madruga, pode vê-los a andar, num passo largo e rápido, rumo a um tapume ou a um amontoado de tijolos, cal e cimento. Vestem calça larga de porta de loja, barata; camisa de mangas curtas e, oscilando na ponta do braço musculoso, uma sacola plástica, de qualquer companhia de aviação. Que leva ali? "O almoço e o café, dona".

Parecem feitos na mesma forma, tão iguais são todos. E são. A forma é o nordeste seco, faminto, sofredor. Sem presente. E que futuro? Vindos da Bahia, do Sergipe, da pequenina Alagoas ou do Ceará infeliz, trazem todos uma saudade danada daquela terra e uma ânsia louca de ganhar dinheiro. De juntar dinheiro.

"De onde você é?" Sorriem. E não dizem. Quando muito falam que vieram do interior do Ceará. Acho que sentem pejo de dizer o nome da cidade que abandonaram provisoriamente. Qual de nós a conheceria: E também não dizem para que aquele nome querido não os faça estourar em soluços.

Como vieram? É outra coisa que escondem. Pra que relembrar o suplício?

Como vivem aqui? Trabalhando, trabalhando e trabalhando. Carregam massa. Empurram carrinhos de concreto. Desde o dia da chegada. Que qualquer homem sabe encher uma lata com areia. E mesmo um analfabeto sabe levar, no ombro, uma caçamba de massa. É o que fazem, nas mil construções da cidade. Mês após mês. Com sol e calor. Na chuva gelada.

Nos primeiros dias trabalham com as calças com que vieram. Lavam-nas nas tardes de sábado. Comem pão seco. Regalam-se com um gole de café. Dormem no chão da obra.

Depois vão se arrumando. Companheiros arranjam-lhe um canto onde dormir. Mostram-lhes onde se pode mastigar bastante por pouco dinheiro. Cedem-lhes um fogareiro. Um violão. Alguém lhes dá um short desbotado. E é de short, sem camisa, que trabalham, o sol castigando-lhes as costas fortes. Não correm no trabalho. Mas levam oito horas andando pra cima e pra baixo, sem parar. Sorriem sempre. Para o pedreiro exigente e apressado. Para o mar que não conheciam ou que não é verde como o que chegaram a ver na sua terra. Para uma saia pequena e colorida que balança, lá embaixo, na rua. Tão distante.

Quando juntam dinheiro, atrevem-se a tirar uma nota para comprar, no almoço, uma cocada. Que saboreiam com sentimento de culpa. Eles no luxo. E a família, lá longe?

Assim são quase todos os serventes que fazem Santos subir. A quem, com carinho, chamamos de "paus de arara". Como nos chamarão eles?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série