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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 76)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 27 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Eusébio

Lydia Federici

Apareceu. Vindo, com certeza, de algum lugar do céu. Como chegou, ninguém sabe. Dona Amália descobriu-o, pouco depois do almoço, parado e infeliz, no canteiro grande de grama recém cortada. Olhou-o de perto. Parecia doente. Com os olhos pretos lacrimejantes. Jururu de dar pena.

"Não, meu filho. Aí é que você não pode ficar. Os moleques vão encher o jardim de pedras. amos lá para os fundos".

E enxotou-o para o fundo do quintal, falando com mansidão a fim de não assustar o pobre bicho doente. E ele foi. Muito devagar, titubeante, mas foi.

"Você deve estar com fome, não?" Foi buscar comida. "Coma. Comendo você melhora". E ele comeu. Tudo. Tateando o chão com o bico. Devia estar bem ruim da vida o pobre bicho. Mas, comendo, melhoraria. Para dona Amália, fraqueza e doença é uma simples questão de comida. Comeu bem, melhorou.

À noite, empoleirou-se num telheiro. No dia seguinte, pulou para o quintal do vizinho. Foi um grande erro seu. Laike, pequenina mas valente, quase o estraçalha. Se o doutor Armando não vem ver a barulheira, era uma vez esta história. Para compensá-lo do susto, o vizinho também lhe deu comida e mandou-o para o outro lado do muro. Lá, o jardim era grande e sossegado. E foi assim que ele viveu uns dias. Recebendo comida, apanhando sol, dormitando sob a sombra tranquila das árvores. Descansando, à noite, sobre um tronco cortado, bem a jeito. Só um perigo poderia preocupá-lo: a gata Matusquela. Mas essa vivia de estômago cheio e estava muito atarefada, naquelas noites de meia lua, a pesar as possibilidades de cinco ardorosos e miaulentos apaixonados seus.

O fato é que comida farta e sossego conseguiram transformar Eusébio - ganhara nome, sim, que naquela casa tudo é batizado - num ex-doente. A coriza desapareceu, seu peito preto perdeu a aguda magreza e as asas, novamente fortes, levaram-no a pequenos ensaios aviatórios. Nada de exageros. Simples pousos sobre os telhados da vizinhança. Mas era só ver dona Amália pelo jardim e, pronto, lá vinha ele, num desliza planado, a lembrar-lhe que estava com fome. Ficou tão confiado que se atrevia a chegar até a porta da cozinha.

Um belo dia, sumiu. Voltou, com certeza, a rodar pelo céu. Pelo mesmo céu de onde, doente, tinha vindo. E em cuja amplidão azul, são e feliz, quisera voltar a voar.

Na casa de jardim grande, dona Amália sentiu falta de Eusébio. Era uma coisa feia. Mas era o Eusébio de quem ela cuidara. E que, ingratamente, sem um "obrigado", se fora. Mas ontem, Eusébio voltou. Dando-lhe carne, dona Amália, emocionada, mostrou-mo. Deus! Que urubu pavoroso!


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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