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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 73)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 23 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mais bondes

Lydia Federici

Bonde, hoje, em Santos, é aquele bolo humano que se arrasta sobre os trilhos. É ou não é essa a impressão que se recebe ao perceber um bonde dos chamados abertos? Só identificado como tal pela alavanca superior, encostada obedientemente nos fios de energia?

Uma vez que citamos os bondes abertos, verdadeiros cachos humanos, falemos da inovação há poucos anos lançada: o bonde fechado, seguro, rendoso e calorento. Em que alguns felizes, que conseguem sentar-se, avançam de banda, como os caranguejos. Não é à toa que descem tontos e que ficam parados no meio da rua, sem saber se vão para a direita ou para a esquerda. Acho que essa é uma das razões da ojeriza do santista pelo camarão prateado. É claro que há outras. Perguntem a qualquer senhorinha.

O bonde aberto, verde, curto ou comprido, arrastando reboques dançarinos pelos trilhos desiguais dos bairros operários, ainda é o preferido. No verão, quando se consegue livrar o nariz acima do ensardinhamento humano, sempre se tem a sensação de andar ao ar livre. De receber, puro, um centímetro cúbico de ar fresco e iodado. Por mais prensado que se viaje, existe sempre aquela doce impressão de liberdade.

A característica atual de nossos bondes – a única que restou – é constituída pelos dois estribos. As outras – limpeza, campainha, cortesia dos empregados – sumiram. Exigências do dinamismo da vida moderna, sem dúvida. Mas os dois estribos ficaram. Para conforto e comodidade dos velhos de pernas reumáticas, das crianças de pernas curtas, das senhoras de pernas entravadas pelas saias estreitas. Os que vem de fora, entretanto, amaldiçoam essa ideia. Acostumados com os bondes de um só estribo, os forasteiros, na sua pressa e afobação, metem a canela, sistematicamente, contra o segundo degrau.

É bom andar de bonde. Sempre, bem entendido, que não haja pressa em chegar, que não se possua calo, que se seja malabarista e, principalmente, que a criatura não seja de briga. Que não seja de briga para encrencar com coisas sem importância.

Como por exemplo: com as três escolares irrequietas entre as pernas, co uma morena gorda quase sentada nas costas, com um short molhado manchando o tropical cinza pálido, com o embrulho pontiagudo cutucando a costela, com o jornal do vizinho tapando o rosto, com mãos que passam a nota de dez a um dedo do nariz, com um menino vesgo, metido a muque, entre os bancos apinhados, e que cisma de pisar sobre pés encolhidos.

Além de outras pequeninas coisas que, a cada parada, vão acontecendo. Modificando, sempre para pior, uma situação impiorável. Mas que, por incrível que pareça, sempre se torna mais crítica. E insustentável.

Dizem que, dia mais, dia menos, os bondes vão ser aposentados. Não façam isso, pelo amor de Deus. Como é que a gente vai desculpar o atraso? O mau humor? As falhas todas?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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