GENTE E COISAS DA CIDADE Bondes
Lydia Federici
Não serão muitos, infelizmente, os santistas que pegaram o tempo do bonde puxado a burro. Os de mais de 60 anos, entretanto – benza-os Deus
– dele ainda hão de lembrar-se. Era um bonde pequenino, leve, curto, andando sobre trilhos plantados no areão, sobre uma cama de dormentes. Trilhos de bitola estreita, sobre os quais, quando o burrico estava bem disposto, o bonde chacoalhava de
assustar. Pegar o bonde, naquela época, era fácil: simples questão de paciência. Só esperar. O difícil era chegar. Se o burro cismasse – e burro é cismador – e desse de não querer andar, chegava-se ao destino, sim. Mas não de bonde.
Um dia, eletrificada a linha para o José Menino, os burros aposentaram-se. Alguns. Que outros continuaram a puxar bonde até a eletrificação total das diversas linhas. Mesmo depois que isso sucedeu, alguns mansos e gordos burricos ainda ganhavam o
seu milho diário movimentando os reboques que, nas horas de maior movimento, eram engatados aos bondes elétricos. Ex-alunos do Luso-Brasileiro devem lembrar-se do burro que passava o dia naquele desvio lá em cima da Conselheiro Nébias, perto do
José Bonifácio.
Bonde de Santos sempre foi famoso. Pela limpeza, por não dançar exagerado, pela campainha e pela cortesia de motorneiros e cobradores da City. Todos eles, com raras exceções, vindos da boa terra de Portugal. Tendo de lá trazido a calma e o sossego
proverbiais dos campesinos, o bom humor dos simples, o trabalho consciencioso, calado e gentil dos que gostam de trabalhar. Com amor.
Cobrador, nesse tempo, lembrava aos que, distraídos, liam o jornal:
"Passagem, se me faz o favoire". Era quase um pedido de desculpa pela interrupção. Nenhum se atrevia a dar o sinal de partida antes das senhoras se haverem acomodado. que elas podiam magoar-se, pois sim senhor.
Quando a mãe de família tocava a campainha, o cobrador saía de lá de traz, da plataforma, onde separava as moedas de 200 e 400 réis, de 500, de mil réis e de tostão, distribuindo-as pelos bolsos do
colete e paletó, e vinha, correndo, ajudar as crianças a pisar o chão firme. O motorneiro, por mais que demorasse o apito de seu companheiro, nunca se punha a tilintar, com o pé impaciente, a antipática campainha de apressamento.
Vinha um senhor correndo no meio da quadra? O bonde esperava. Ninguém reclamava. E o motorneiro, sorridente, tocava a pala do boné, em resposta ao agradecimento meio sem fôlego do passageiro atrasado.
Os bondes tomavam seu banho diário na estação da Vila Matias. De manhã,os passageiros ainda encontravam o chão úmido. E limpo de dar gosto. As sanefas subiam e desciam a um simples puxão. E ficavam paradas, firmes, em qualquer altura, tentasse o
bonde sacudir quanto quisesse. A campainha de parada, no topo de cada coluna, funcionava sempre. Se, por acaso, falhasse, no dia seguinte já estava em ordem. Lembram-se?
E por hoje, a contragosto, desço aqui.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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