GENTE E COISAS DA CIDADE História de cais
Lydia Federici
Contaram-me a história em oito frases. A história era boa. As oito frases muito curtas. É evidente que, com um pouco de
imaginação, detalhes poderiam ser criados. Mas detalhes imaginados tirariam a autenticidade da história. Apertei, com perguntas, a amiga novidadeira. Fora no cais que acontecera? Em que armazém? Interno ou externo?
Ela não presenciara o fato. Tinham-lhe contado. Como contava agora. Mas como fazer a crônica sem detalhe algum. O local era o cais. Qualquer pedaço de cais. E o homem era um turista espanhol. Turista ou embarcadiço? Espanhol mesmo ou de um outro
país qualquer de língua castelhana? Não sabia. Como fazer a crônica assim por alto?
O turista – ou marinheiro? Espanhol – argentino, mexicano ou chileno? – atirou uma nota de cinco cruzeiros ao chão, deu uma valente cuspida e começou a espisotear, com raiva, o pequeno pedaço de papel. Por que? Seria a nota falsa? Ou muito suja? Ou
de muito pouco valor? Não sabia. Que dizer na crônica, então?
Um estivador viu aquilo. Acho que era desaforo. Onde já se viu jogar dinheiro fora? Tanto pobre precisando. De mais a mais, atirando-o daquela forma acintosa, desprezando a terra cujo chão pisava. Era ele obrigado a estar aqui? Ela não soube
explicar-me. E sem explicações, como contar o fato direito?
O estivador ou carregador ou doqueiro chegou-se para o homem que dançava sobre a nota e mandou-o, em bom português, com certeza, recolher o dinheiro. O outro negou-se a isso. Um safanão atirou o gringo sobre o chão cinzento. Soco ou capoeira? Não
sabia. "Você vai pegar essa nota e com a boca". O outro, já rodeado por um grupo de estivadores, não teve outra saída. Bocanhou-a. "E vai engolir". O outro mastigou-a. E engoliu-a. Desgraçado da vida. Amaldiçoando, por dentro, não apenas o dinheiro
mas também a gente desta terra. Inclusive a polícia que estava ali e não tomara conhecimento de como um estrangeiro era bem tratado por um grupo de "súcios" truculentos. Tinha mais dinheiro no bolso? Pois comesse as notas. Sujas, falsas ou de pouco
valor. Pra aprender a ser respeitador. E ele comeu? Não sabia. E depois? Que tinha acontecido? Não sabia.
Como é possível escrever sobre uma coisa que só se chega a saber por alto?
A história é boa. Muito boa. Serviria para mostrar uma porção de coisas. Como um estrangeiro mal avisado nos despreza. Como um grupo de trabalhadores de forma primária, defende, com brio, as coisas de seu país. Sim. A história é boa. E verídica.
Aconteceu de fato, há poucos dias, no cais de Santos. Mas como é que vou contá-la se desconheço os detalhes? Desculpe-me, leitor amigo. Fico apenas na intenção.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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