GENTE E COISAS DA CIDADE E o Brasil?
Lydia Federici
Ontem, depois de ficar até meia-noite, na véspera, diante do aparelho de televisão, ela se levantou com a cabeça vazia, vazia. Mas vazia de
vez.
Escovando os dentes, olhou-se ao espelho. "Pareço um cão hidrófobo. Espuma na boca e nada na cabeça. A não ser raiva. A não ser vontade de morder. Mas morder o que? Morder quem?"
Tomou um cafezinho. Ruim. Acendeu um cigarro. Horrível. Só fumaça. Fumaça ardida, queimando boca, apertando o estômago. Sentiu vontade de andar. Para gastar aquele nervosismo que desassossegava as pernas e obrigava os dedos nervosos a virar e
revirar o cigarro.
Saiu. Na rua, uma mulata, cantarolando, andava, alegre, rumo à casa da patroa. Seu pensamento? Com certeza, a saída, à noite, para o próximo encontro gostoso com o namorado. Ou então, lembranças da noite anterior, gostosa, com a conversa com o
moreno. E o Brasil? Mas que Brasil? Seu namorado, ai, ai, chamava-se Benedito. Que tinha ele ou ela a ver com o Brasil?
Quatro operários, na frente de uma construção, desentortando vergalhões de ferro, olham para a mulata de andar ritmado. Riem, piscam um olho, acenam a cabeça em sinal aprobativo. As mãos estão paradas. A mulata cantarolante passa por eles. Um diz
alguma coisa. Ela não liga. Vai passando. Oito olhos grudam-se à saia estampada. Dez. O de lá de cima, do andaime, também acompanha o espetáculo. E o Brasil? Que Brasil? Eles pensam na mulata. Que é que o Brasil tem a ver com isso?
No jornaleiro, um rapaz de cara sonolenta chega-se à banca e fica olhando para as capas das revistas. Enfia as mãos nos bolsos e mergulha os olhos nas plumas coloridas. E o Brasil? O Brasil? Sabe lá. Ele está vendo carnaval, fantasia de carnaval,
mulher fantasiada no carnaval.
Um garoto, com um livro e dois cadernos amarrados sob o braço, estende uma nota e tira uma revista do estande, cujas páginas cheias e desenhos começa a estudar, com um sorriso guloso nos lábios entreabertos. E o Brasil: Que é que tem o Brasil?
Aconteceu alguma coisa?
E ela pensa: "Será que ninguém pensa? Será que ninguém sabe pensar?"
Volta para casa. A cabeça já não está vazia. Ao contrário. Há coisas, ali, a rodar, a aparecer e a desaparecer, a misturar-se, numa desordem de dar enjoo. E há sentimentos também. Que se entrechocam. Dando frio e dando calor. Percebe que o fígado
principia a reclamar. E o Brasil?
O Brasil? Atira-se na cama e chora. Chora como uma danada. Sem saber ao certo por que razão está chorando.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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