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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 68)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 17 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

E o Brasil?

Lydia Federici

Ontem, depois de ficar até meia-noite, na véspera, diante do aparelho de televisão, ela se levantou com a cabeça vazia, vazia. Mas vazia de vez.

Escovando os dentes, olhou-se ao espelho. "Pareço um cão hidrófobo. Espuma na boca e nada na cabeça. A não ser raiva. A não ser vontade de morder. Mas morder o que? Morder quem?"

Tomou um cafezinho. Ruim. Acendeu um cigarro. Horrível. Só fumaça. Fumaça ardida, queimando boca, apertando o estômago. Sentiu vontade de andar. Para gastar aquele nervosismo que desassossegava as pernas e obrigava os dedos nervosos a virar e revirar o cigarro.

Saiu. Na rua, uma mulata, cantarolando, andava, alegre, rumo à casa da patroa. Seu pensamento? Com certeza, a saída, à noite, para o próximo encontro gostoso com o namorado. Ou então, lembranças da noite anterior, gostosa, com a conversa com o moreno. E o Brasil? Mas que Brasil? Seu namorado, ai, ai, chamava-se Benedito. Que tinha ele ou ela a ver com o Brasil?

Quatro operários, na frente de uma construção, desentortando vergalhões de ferro, olham para a mulata de andar ritmado. Riem, piscam um olho, acenam a cabeça em sinal aprobativo. As mãos estão paradas. A mulata cantarolante passa por eles. Um diz alguma coisa. Ela não liga. Vai passando. Oito olhos grudam-se à saia estampada. Dez. O de lá de cima, do andaime, também acompanha o espetáculo. E o Brasil? Que Brasil? Eles pensam na mulata. Que é que o Brasil tem a ver com isso?

No jornaleiro, um rapaz de cara sonolenta chega-se à banca e fica olhando para as capas das revistas. Enfia as mãos nos bolsos e mergulha os olhos nas plumas coloridas. E o Brasil? O Brasil? Sabe lá. Ele está vendo carnaval, fantasia de carnaval, mulher fantasiada no carnaval.

Um garoto, com um livro e dois cadernos amarrados sob o braço, estende uma nota e tira uma revista do estande, cujas páginas cheias e desenhos começa a estudar, com um sorriso guloso nos lábios entreabertos. E o Brasil: Que é que tem o Brasil? Aconteceu alguma coisa?

E ela pensa: "Será que ninguém pensa? Será que ninguém sabe pensar?"

Volta para casa. A cabeça já não está vazia. Ao contrário. Há coisas, ali, a rodar, a aparecer e a desaparecer, a misturar-se, numa desordem de dar enjoo. E há sentimentos também. Que se entrechocam. Dando frio e dando calor. Percebe que o fígado principia a reclamar. E o Brasil?

O Brasil? Atira-se na cama e chora. Chora como uma danada. Sem saber ao certo por que razão está chorando.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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