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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 66)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 15 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Na José Bonifácio

Lydia Federici

Grande, nua e fria.

É isso que é a Praça José Bonifácio. Mas ontem ela estava diferente. Às nove e meia da manhã, no passeio arrebentado, entre a Catedral inacabada e o inacabado Fórum, um rapaz de calças pretas e camisa branca veste a toga.

Enfia as mangas que não querem entrar. Resolve o impasse com um safanão vigoroso, ajeita os ombros e principia a atacar o problema quase infindável do abotoamento. Há casas e botões desde o pescoço até quase os pés. Com as pernas abertas e o corpo dobrado, as mãos desajeitadas destrincham o seu primeiro caso.

Causa longa, demorada, trabalhosa. Mas finalmente vencida. E saudada com um bom sorriso de satisfação e de orgulho. Só falta o cinturão, de fivela dourada, e pronto! Lá vai ele, rumo aos degraus a igreja, colocar a sua beca preta ao lado das calças vermelhas dos guardas da Força Pública.

Automóveis principiam a despejar rapazes de calças escuras e camisas brancas. Mas esses vem acompanhados. Por senhores de cabelos brancos que andam com o corpo bem empinado; por senhoras de chapéus enfeitados ou por senhoras de cabelos enfeitados por penteados brilhantes. Há moças, mocinhas, outros rapazes, senhores e crianças.

A praça sorri. Cumprimentos amigos e abraços calorosos são trocados de meio em meio minuto.

Algumas moças togadas começam a chegar. Essas já saíram preparadas de casa. Mas os rapazes não. Vê lá.

"Vir guiando o carro de rendinha no pescoço? Não. Visto-me aqui".

E todos enfiam a toga em plena praça. São homens feitos, alguns com a cabeça raiada de prata. Mãos femininas, mãos de esposas, sempre tão práticas mas, nesta hora, trêmulas e incertas, ajeitam a gola, endireitam as mangas da longa bata preta. Um sorriso comovido sorri para outro sorriso que não quer parecer comovido.

Mães apertando os olhos cansados, tiram as luvas e, com os dedos endurecidos, tateiam o peito de seus filhos à procura das casas e dos botões. Um beijo carinhoso lhes agradece mais aquela atenção.

Noivas, namoradas, irmãs, esquentam aquele pedaço de praça. Uma menina de seis anos, batendo palmas, puxa para baixo a barra preta meio erguida. Agarra a mão do pai e encosta a cabeça contra aquela capa tão engraçada. Não compreende o que significa aquilo. Mas deve ser coisa boa porque todos tão contentes. Até parece que é festa. E a menina sorri.

Que calor, quanto carinho, ontem, a espalhar-se pela frieza da praça. Até as paredes cinzentas do Fórum pareciam estar em festa. E estavam mesmo.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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