GENTE E COISAS DA CIDADE Na José Bonifácio
Lydia Federici
Grande, nua e fria.
É isso que é a Praça José Bonifácio. Mas ontem ela estava diferente. Às nove e meia da manhã, no passeio arrebentado, entre a Catedral inacabada e o inacabado Fórum, um rapaz de calças pretas e camisa branca veste a toga.
Enfia as mangas que não querem entrar. Resolve o impasse com um safanão vigoroso, ajeita os ombros e principia a atacar o problema quase infindável do abotoamento. Há casas e botões desde o pescoço
até quase os pés. Com as pernas abertas e o corpo dobrado, as mãos desajeitadas destrincham o seu primeiro caso.
Causa longa, demorada, trabalhosa. Mas finalmente vencida. E saudada com um bom sorriso de satisfação e de orgulho. Só falta o cinturão, de fivela dourada, e pronto! Lá vai ele, rumo aos degraus a
igreja, colocar a sua beca preta ao lado das calças vermelhas dos guardas da Força Pública.
Automóveis principiam a despejar rapazes de calças escuras e camisas brancas. Mas esses vem acompanhados. Por senhores de cabelos brancos que andam com o corpo bem empinado; por senhoras de chapéus enfeitados ou por senhoras de cabelos enfeitados
por penteados brilhantes. Há moças, mocinhas, outros rapazes, senhores e crianças.
A praça sorri. Cumprimentos amigos e abraços calorosos são trocados de meio em meio minuto.
Algumas moças togadas começam a chegar. Essas já saíram preparadas de casa. Mas os rapazes não. Vê lá.
"Vir guiando o carro de rendinha no pescoço? Não. Visto-me aqui".
E todos enfiam a toga em plena praça. São homens feitos, alguns com a cabeça raiada de prata. Mãos femininas, mãos de esposas, sempre tão práticas mas, nesta hora, trêmulas e incertas, ajeitam a gola, endireitam as mangas da longa bata preta. Um
sorriso comovido sorri para outro sorriso que não quer parecer comovido.
Mães apertando os olhos cansados, tiram as luvas e, com os dedos endurecidos, tateiam o peito de seus filhos à procura das casas e dos botões. Um beijo carinhoso lhes agradece mais aquela atenção.
Noivas, namoradas, irmãs, esquentam aquele pedaço de praça. Uma menina de seis anos, batendo palmas, puxa para baixo a barra preta meio erguida. Agarra a mão do pai e encosta a cabeça contra aquela capa tão engraçada. Não compreende o que significa
aquilo. Mas deve ser coisa boa porque todos tão contentes. Até parece que é festa. E a menina sorri.
Que calor, quanto carinho, ontem, a espalhar-se pela frieza da praça. Até as paredes cinzentas do Fórum pareciam estar em festa. E estavam mesmo.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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