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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 65)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 14 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Lição

Lydia Federici

Só soube da história na quarta-feira de Cinzas. À noite. Já tinha ouvido comentários antes. Chegara mesmo a ver, ao passar pela avenida da praia, numa tarde de corso, aquela brincadeira sem graça. Nenhum rapazinho se atrevera a atirar-lhe farinha. Muito menos café, açúcar ou leite em pó. Não se sentira, pois, diretamente atingido. Mas aquele desperdício chocara-o profundamente.

Mas, da história, só teve conhecimento na noite de quarta-feira. Não duvidou. Os que lhe contaram eram amigos. E amigos não mentem sem necessidade. Mas que aquilo custava a entrar-lhe na cabeça, custava.

Passou parte da noite sem dormir. Aborrecido. Preocupado. Com o fato e principalmente com as medidas que teria que tomar. Mas quais?

No dia seguinte, reunida a família para o café da manhã, recebeu o beijo de todos com um sorriso meio sério. Coisa rara. Sempre havia muita alegria e bom humor naquela primeira reunião matinal.

O filho maior cutucou a irmã, apontando para o açucareiro.

"Vai demorar muito, molezinha ambulante?" E continuava a beliscar-lhe o braço gordo, apressando-a. Quando, por fim, o açucareiro lhe foi passado e antes mesmo que ele enchesse a primeira colher, a voz do pai, muito calma, encheu a copa.

"José Carlos". O rapazinho levantou a cabeça, sorrindo. A mão nervosa, porém, continuou a vasculhar o açúcar, procurando encher a colher. "José Carlos, fique quieto um instante, sim? Contaram-me que você, no Carnaval, no automóvel de uns amigos seus, andou atirando fora açúcar. Foi mesmo?"

O garoto arregalou os olhos, espantado. "Bem. Eu não atirei fora. Joguei… joguei sobre uns companheiros. Como todos fizeram". A última frase saiu rápida, em contraste com as outras, muito gaguejadas.

"Açúcar, meu filho,não é para ser jogado na rua. Açúcar é alimento. É isso com que você vai adoçar seu café. E, uma vez que você já inutilizou muito açúcar, não seria conveniente economizá-lo agora?"

"Mas papai. Eu não…" Não terminou a frase diante do rosto sério e decidido do pai. Afastou o açucareiro. Olhou para o leite. Leite é doce. Não precisa de açúcar. Estendeu a mão para a leiteira. E encolheu-a. A mesma voz calma perguntava se ele também não havia jogado leite em pó. E café.

"Pão, meu filho, é feito de farinha. Bolacha também. Bolo, idem. E, se você tiver brio – e olhava para a mulher muito pálida, com jeito de quem ia chorar – não vai comprar nada disso na cantina da escola. Sinta o estômago vazio. Doendo. E pense nos que, de verdade, não têm o que comer. Por miséria. É justo jogar farinha fora? À toa?"

Se a história é verdadeira? Sei lá. Para um pai verdadeiro, creio que sim.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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