GENTE E COISAS DA CIDADE Lição
Lydia Federici
Só soube da história na quarta-feira de Cinzas. À noite. Já tinha ouvido comentários antes. Chegara mesmo a ver, ao passar pela avenida da
praia, numa tarde de corso, aquela brincadeira sem graça. Nenhum rapazinho se atrevera a atirar-lhe farinha. Muito menos café, açúcar ou leite em pó. Não se sentira, pois, diretamente atingido. Mas aquele desperdício chocara-o profundamente.
Mas, da história, só teve conhecimento na noite de quarta-feira. Não duvidou. Os que lhe contaram eram amigos. E amigos não mentem sem necessidade. Mas que aquilo custava a entrar-lhe na cabeça, custava.
Passou parte da noite sem dormir. Aborrecido. Preocupado. Com o fato e principalmente com as medidas que teria que tomar. Mas quais?
No dia seguinte, reunida a família para o café da manhã, recebeu o beijo de todos com um sorriso meio sério. Coisa rara. Sempre havia muita alegria e bom humor naquela primeira reunião matinal.
O filho maior cutucou a irmã, apontando para o açucareiro.
"Vai demorar muito, molezinha ambulante?" E continuava a beliscar-lhe o braço gordo, apressando-a. Quando, por fim, o açucareiro lhe foi passado e antes mesmo que ele enchesse a primeira colher, a voz do pai, muito calma, encheu a copa.
"José Carlos". O rapazinho levantou a cabeça, sorrindo. A mão nervosa, porém, continuou a vasculhar o açúcar, procurando encher a colher. "José Carlos, fique quieto um instante, sim? Contaram-me que você, no Carnaval, no automóvel de uns amigos
seus, andou atirando fora açúcar. Foi mesmo?"
O garoto arregalou os olhos, espantado. "Bem. Eu não atirei fora. Joguei… joguei sobre uns companheiros. Como todos fizeram". A última frase saiu rápida, em contraste com as outras, muito gaguejadas.
"Açúcar, meu filho,não é para ser jogado na rua. Açúcar é alimento. É isso com que você vai adoçar seu café. E, uma vez que você já inutilizou muito açúcar, não seria conveniente economizá-lo agora?"
"Mas papai. Eu não…" Não terminou a frase diante do rosto sério e decidido do pai. Afastou o açucareiro. Olhou para o leite. Leite é doce. Não precisa de açúcar. Estendeu a mão para a leiteira. E encolheu-a. A mesma voz calma perguntava se ele
também não havia jogado leite em pó. E café.
"Pão, meu filho, é feito de farinha. Bolacha também. Bolo, idem. E, se você tiver brio – e olhava para a mulher muito pálida, com jeito de quem ia chorar – não vai comprar nada disso na cantina da escola. Sinta o estômago vazio. Doendo. E pense nos
que, de verdade, não têm o que comer. Por miséria. É justo jogar farinha fora? À toa?"
Se a história é verdadeira? Sei lá. Para um pai verdadeiro, creio que sim.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|